A "Inglaterra", nome por que comummente entre nós costuma ser tratado o Reino Unido (*), é o mais velho aliado de Portugal, por virtude da existência do Tratado de Windsor, de 1386, tido como o mais antigo no mundo. De facto, embora sempre por um elevado preço (muitas vezes, económico e financeiro), foi a regular associação a Londres que, por mais de uma vez, permitiu a manutenção de Portugal como um Estado autónomo - já hesitaria em dizer "soberano" ou "independente".
Ao longo de séculos, na cultura estratégica portuguesa, o laço privilegiado com Londres esteve sempre presente e condicionou toda a nossa postura à escala internacional. A dependência face aos britânicos faz, assim, parte integrante da nossa história diplomática, prolongando-se pelo século XX, com o salazarismo a não escapar a este tropismo, quando a isso foi obrigado.
As Necessidades alimentaram e desenvolveram, naturalmente, essa linha de relação próxima. Quando entrei para o MNE, a perspetiva da existência de um entendimento privilegiado com Londres prevalecia no DNA de setores então dominantes da nossa diplomacia. Creio que ela dava mesmo origem a um certo "comodismo" seguidista, que, inicialmente, chegou a ter um prolongamento na condução de certas políticas sectoriais dentro da União Europeia. Mas, há que ser realista, com exceção dos temas e segurança e defesa, essa "tradição" perdeu-se hoje, quase que por completo. Sem querer com isto lançar uma teoria, mas apenas constatar um facto, sou levado a pensar que a total "naturalização" da nossa atual relação com a Espanha, somada a uma "europeização" da nossa atitude externa que a isso não é alheia, ajudou à diluição do laço específico que foi mantido com o Reino Unido, durante tanto tempo. O que só prova a importância da contribuição britânica, enquanto se mantiveram acesos os alertas aljubarroteanos".
Uma outra questão, para a qual ainda não tenho uma resposta completa, é visão que Londres foi tendo dessa mesma relação com o nosso país. O declínio colonial de Portugal, com a saída do Brasil e com o diktat britânico na crise do "mapa cor-de-rosa", bem como a estabilização dos seus equilíbrios estratégicos no espaço intraeuropeu, que levaram o Reino Unido a aliar-se à França nos dois conflitos mundiais, terão desvalorizado progressivamente a importância do vetor de "controlo" sobre Lisboa. Complacente com a ditadura de Salazar (**), Londres soube escapar ao dilema que este lhe colocou aquando da invasão da Índia "portuguesa", ao procurar invocar a "Velha Aliança". Mais tarde, foi com incomodidade que os britânicos reagiram quando pretenderam obter facilidades logísticas para a sua operação de retoma das Falkland/Malvinas. Nessa crise, o MNE, pela hábil mão do secretário de Estado Leonardo Mathias, sugeriu que Londres o fizesse à luz do Tratado de Windsor...
Um dia, no início dos anos 90, quando trabalhava na nossa Embaixada em Londres, foi-me perguntado, durante uma palestra na "Canning House", se eu ainda acreditava na validade desse tratado. Respondi, com a maior sinceridade, que acreditava nele tanto como os ingleses...
Interessante para mim foi, mais tarde, verificar que, em certos meios internacionais, permanecia a ideia residual de que a diplomacia portuguesa ainda "dependia" essencialmente de Londres. Recordo-me, num contacto com jornalistas estrangeiros em Bruxelas, creio que em 1997, a propósito de uma iniciativa qualquer que eu tinha promovido no âmbito comunitário, alguém me perguntar se tinha "coordenado" a nossa posição com Londres, antes de a apresentar aos restantes parceiros. Fiquei siderado! Aliás, os tempos viriam a provar que, em muitas áreas comunitárias, as posições dos dois países viriam a afastar-se de forma muito significativa, por uma simples e natural divergência de interesses. Tenho presentes alguns momentos complexos, dos quais não esteve ausente a sensível questão timorense.
Tudo isto não significa que o Reino Unido não seja, nos dias que correm, um Estado com o qual Portugal mantém um excelente relacionamento, com o qual trabalhamos em forte identidade de ideias em muitos domínios - de que, como disse, o da defesa e segurança é, muito provavelmente, o mais significativo. Partilhamos imensos valores e princípios comuns, mantemos uma leitura próxima da importância do laço transatlântico e, frequentemente, estamos juntos em certas linhas de política face a África. Mas tudo isto sem exclusivismos nem necessidade de relações de privilégio.
É na estabilidade deste quadro de relações que, às vezes, um embaixador pode fazer toda a diferença, trazendo para o país onde está acreditado a imagem de alguém que, não deixando de defender os interesses do seu país, sabe entender o dos outros, tendo sobre ele um olhar externo e simpático, o que acaba por se refletir de forma muito positiva sobre as relações bilaterais.
É esse o caso de Alex Ellis, o embaixador britânico que agora nos deixa, de quem já aqui havia falado, e que, há dias, deixou no "Expresso" esta lindíssima lista de "Coisas que nunca deverão mudar em Portugal":
É esse o caso de Alex Ellis, o embaixador britânico que agora nos deixa, de quem já aqui havia falado, e que, há dias, deixou no "Expresso" esta lindíssima lista de "Coisas que nunca deverão mudar em Portugal":
"Portugueses: 2010 tem sido um ano difícil para muitos; incerteza, mudanças, ansiedade sobre o futuro. O espírito do momento é de pessimismo, não de alegria. Mas o ânimo certo para entrar na época natalícia deve ser diferente. Por isso permitam-me, em vésperas da minha partida pela segunda vez deste pequeno jardim, eleger dez coisas que espero bem que nunca mudem em Portugal.
1. A ligação intergeracional. Portugal é um país em que os jovens e os velhos conversam - normalmente dentro do contexto familiar. O estatuto de avô é altíssimo na sociedade portuguesa - e ainda bem. Os portugueses respeitam a primeira e a terceira idade, para o benefício de todos.
2. O lugar central da comida na vida diária. O almoço conta - não uma sandes comida com pressa e mal digerida, mas uma sopa, um prato quente etc, tudo comido à mesa e em companhia. Também aqui se reforça uma ligação com a família.
3. A variedade da paisagem. Não conheço outro pais onde seja possível ver tanta coisa num dia só, desde a imponência do rio Douro até à beleza das planícies do Alentejo, passando pelos planaltos e pela serra da Beira Interior.
4. A tolerância. Nunca vivi num país que aceita tão bem os estrangeiros. Não é por acaso que Portugal é considerado um dos países mais abertos aos emigrantes pelo estudo internacional MIPEX.
5. O café e os cafés. Os lugares são simples, acolhedores e agradáveis; a bebida é um pequeno prazer diário, especialmente quando acompanhado por um pastel de nata quente.
6. A inocência. É difícil descrever esta ideia em poucas palavras sem parecer paternalista; mas vi, no meu primeiro fim de semana em Portugal, numa festa popular em Vila Real, adolescentes a dançar danças tradicionais com uma alegria e abertura que têm, na sua raiz, uma certa inocência.
7. Um profundo espírito de independência. Olhando para o mapa ibérico parece estranho que Portugal continue a ser um país independente. Mas é e não é por acaso. No fundo de cada português há um espírito profundamente autónomo e independentista.
8. As mulheres. O Adido de Defesa na Embaixada, há quinze anos, deu-me um conselho precioso: "Jovem, se quiser uma coisa para ser mesmo bem feita neste país, dê a tarefa a uma mulher". Concordei tanto que me casei com uma portuguesa.
9. A curiosidade sobre, e o conhecimento, do mundo. A influência de "lá" é evidente cá, na comida, nas artes, nos nomes. Portugal é um pais ligado, e que quer continuar ligado, aos outros continentes do mundo.
10. Que o dinheiro não é a coisa mais importante no mundo. As coisas boas de Portugal não são caras. Antes pelo contrário: não há nada melhor do que sair da praia ao fim da tarde e comer um peixe grelhado, acompanhado por um simples copo de vinho.
Então, terminaremos a contemplação do país não com miséria, mas com brindes e abraços. Feliz Natal."
Com muitos embaixadores como o Alex, por cá e por lá, a "oldest alliance" tem sérias hipóteses de ainda ser credível.
(*) Às vezes, faz bem lembrar estas coisas: a Inglaterra, com a Escócia e o País de Gales, constituem a Grã-Bretanha. Londres (que é capital da Inglaterra) é, também, a capital do "Reino Unido da Grã-Bretanha e da Irlanda do Norte"
(**) Sobre este tema, publiquei, já há muito: "The Opposition to the 'New State' and the British Attitude at the End of the Second World War: Hope and Desillusion", in "Portuguese Studies", Vol. 10, King's College, London, 1994
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