segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

Noite em Budapeste

Embora fria, lembro-me de que estava uma bela e límpida noite. À varanda central do majestoso parlamento húngaro, nesse mês de Março de 1999, os presidentes Jorge Sampaio e Árpád Göncz trocavam impressões sobre a paisagem frente ao Danúbio. Eu acompanhava-os, bem como o meu amigo Andras Gulyas, o conselheiro diplomático do presidente húngaro, que conhecera, há quase 20 anos, em Luanda.
Substituindo nessa viagem o ministro dos Negócios Estrangeiros, eu havia estado com Jorge Sampaio, horas antes, num encontro com o primeiro-ministro Viktor Orbán. Os primeiros bombardeamentos da NATO sobre as tropas sérvias no Kosovo anunciavam-se iminentes. A guerra ia explodir, em breve, ali ao lado. Os aviões da NATO iriam sobrevoar a Hungria, que era candidata a integrar a organização. Orbán mostrava-se compreensivelmente tenso, deixando clara a sua preocupação pelas populações de origem húngara da Vojvodina, uma região da Sérvia dotada de alguma autonomia. Quando reagi, politicamente, ao conceito de "futuras populações NATO", que o primeiro-ministro utilizou para caraterizar essas pessoas e a obrigatoriedade da sua proteção prioritária, pareceu-me ver acentuar-se o olhar duro e fechado que mostrou durante todo esse encontro. Não esqueci esse olhar.
Sabia-se que as relações entre o presidente Göncz e Orbán não eram nada fáceis, essencialmente por razões de política interna húngara, mas, igualmente, por diferenças notórias de personalidade. Por contraste com Orbán, Göncz era uma figura suave, um homem cheio de história, com uma vida difícil nos tempos comunistas, da qual, contudo, falava com a superioridade de quem já colocara uma distância entre os traumas e o presente, olhando esse passado apenas na linha do futuro do seu país. Resistente na II Guerra Mundial, havia estado preso durante seis anos, depois da invasão soviética de 1956. Homem de cultura, Göncz seduziu Jorge Sampaio, com quem falou longamente e estabeleceu uma relação pessoal fácil e calorosa.
A certa altura, o presidente húngaro voltou-se para mim e inquiriu:
- Está a ver aquela luz amarela, lá ao fundo, do outro lado do rio?
Ao meu assentimento, acrescentou, num tom algo que me pareceu sombrio e triste:
- Era uma prisão. Uma das piores de Budapeste. Estive lá alguns anos. Foram tempos muito duros. Espero que não voltem, nunca mais. A Europa tem de servir para isso. O seu governo tem de ajudar-nos.
Portugal, como todos reconhecem, comportou-se de forma impecável perante os países que eram candidatos à integração. A Hungria, que entretanto entrou para a União Europeia, preside aos seus destinos, desde há dias. Viktor Órban é, de novo, primeiro-ministro. Göncz, hoje com 89 anos, deixou a presidência há mais de uma década.
Com todo o respeito pelas instituições de cada Estado, constitui hoje uma nossa obrigação comum velar para que os valores que subscrevemos no quadro dos tratados europeus - na esfera da democracia, da liberdade, do respeito pelos direitos fundamentais e da preservação do Estado de direito - sejam observados, sem restrições, em todo o espaço da União. De Lisboa a Tallin, passando por Budapeste, claro.

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