A União Europeia entrou na sua era mais negra, para gáudio dos eurocépticos. Mas a nossa história comum mantém-nos unidos, defende um colunista do Guardian.
Se quer mesmo saber porque é que os europeus pertencem a uma única comunidade visite uma das grandes catedrais medievais britânicas. Passeie pelos claustros de Gloucester ou preste homenagem a William de Sens, o arquitecto normando de Cantuária. Ou, muito simplesmente, toque nas pedras desta verdadeira obra de arte – vieram de Caen, França.
O moderno sonho de uma união política europeia entrou na sua era mais negra. Os eurocépticos dizem-se vingados e realistas – mas nada é tão real como a ilusão de que alguma nação europeia, e muito menos a nossa, pode reivindicar uma transformação interna, uma história singular, desgarrada da narrativa maior de todo o continente. Durante, pelo menos, mil anos a Europa construiu uma cultura comum. A primeira união europeia autointitulou-se “Cristandade”, e no século XI criou um estilo comum de arte, arquitectura e filosofia que transcendia as fronteiras dos novos Estados. A arquitectura gótica irradiava da sua origem em Paris, como uma rosácea, e espalhava-se por toda a Europa. O que é mais real para nós, hoje – os feitos dos reis medievais britânicos ou a elegância dos arcobotantes de estilo gótico da abadia de Iorque? Os episódios mesquinhos da política nacional que os eurocépticos vêem como a verdadeira história da nossa ilha são uma estupidez quando comparados com as ainda vivas glórias da nossa história cultural europeia. A revolução cultural seguinte da Europa, o Renascimento, foi ainda mais cosmopolita. Os intelectuais europeus dos séculos XV e XVI descobriram uma herança clássica greco-romana que estava esquecida. O Renascimento espalhou-se por todo o continente como um fogo florestal. Na abadia de Westminster um escultor florentino, Pietro Torrigiano, colocou crianças douradas no túmulo de Henrique VII enquanto, no outro extremo da Europa, o rei húngaro Matias Corvinus recebia, como presente da cidade de Florença, um busto de Alexandre o Grande. Um viajante como Erasmo podia ir de Roma a Basileia e daí a Londres e por todo o lado encontrava amigos que percebiam as suas ironias. O quadro que resume tudo isto é a obra-prima renascentista de Ticiano, O Rapto de Europa – uma visão do mito que emprestou o seu nome à Europa, pintado em Veneza para o rei de Espanha.
Um vazio de banalidade azul
A UE não soube aproveitar a vitalidade desta história cultural comum. O sítio da Internet da UE chama-se Europa, mas ao contrário do quadro de Ticiano, a página de entrada é um vazio de banalidade azul. Porque não fazer mais pela unidade cultural da Europa? Talvez porque o próprio vinho de Baco que nos faz entusiasmar sobre a nossa identidade comum pode ser perigoso. A celebração das glórias estéticas da Europa deve, por uma questão de rigor, incluir também a herança muçulmana que interagiu com as fontes cristã e clássica na arte europeia desde o início da Idade Média. As ogivas das catedrais góticas de Inglaterra, por exemplo, sofreram a influência da matemática árabe, bem como a renascentista descoberta da perspectiva. Tudo isto pode parecer bom de mais para ser verdade; no entanto, para lá do sangrento dia-a-dia de violência do passado da Europa, para lá das divisões da Reforma e do aparecimento do nacionalismo, o continente continuou sempre a construir uma secreta comunidade de cultura. E nasceu um segredo que, milagre dos milagres, também abarca todas as outras culturas. Mas isto é a realidade histórica. Por cada divisão de forças políticas na história europeia houve sempre uma força cultural unificadora. Todos os movimentos europeus na arte e na arquitectura que hoje apreciamos, que os nossos museus, colecções e salas de espectáculos mostram, são exactamente isso, movimentos europeus. Os estilos Barroco e Rococó, Neoclássico e Romântico, o Realismo do século XIX e o Modernismo do início do século XX – ligaram artistas, intelectuais e públicos da Polónia à Dinamarca. A história da cultura comum da Europa não acabou com a moda de nacionalidade do século XIX, porque o próprio nacionalismo é uma ideia comum europeia – o seu apetite Romântico pela arte e poesia de paisagens reproduziu-se de uma capital para as outras tão implacavelmente tal como os mitos clássicos tinham sido traduzidos por toda a Europa. Hoje, esta cultura comum pode estar à beira da sua maior realização desde Copérnico (que viveu na Europa central; cujas observações foram testadas por Tycho Brahe em Copenhaga; defendidas por Galileu em Roma; e provadas pela Real Sociedade Britânica) quando o Large Hadron Collider [o maior acelerador de partículas do mundo] da OEEN [Organização Europeia de Energia Nuclear] alcançar uma importante descoberta. Muito em breve os europeus que acreditam numa identidade comum terão de se levantar e proclamar a riqueza única e a abertura da nossa cultura – a pluralidade na unidade que faz com que uma igreja barroca na Sicília seja diferente de uma outra na Baviera. No Reino Unido, o Art Fund está a fazer uma campanha para manter um quadro de Bruegel no país. Porquê? Porque é património nosso. Porque somos europeus. Se os eurocépticos começarem por abrir mão de todos os Bruegels e todos os Ticianos, reduzindo a National Gallery a uma sala de retratos ingleses do século XVIII, a estupidez será evidente. Acreditar na Europa não é idealismo; e ainda menos uma abstracção burocrática. Se olhar para a história com as suas verdadeiras cores, verá quão profundamente somos europeus e quão profundas são as raízes dessa identidade comum. Presseurop
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