domingo, 20 de setembro de 2009

Direito à barbaridade


Um jovem francês, filho (curiosamente) de uma cidadã portuguesa e de um árabe, está hoje no centro de uma séria polémica que envolve o ministro do Interior francês, Brice Hortefeux. O governante foi "apanhado" num filme, que aparece no YouTube, no qual aparece a fazer uma graçola, num momento de conversa "solta", no intervalo de uma reunião partidária. Um comentário que faz no filme é, para uns, uma pura manifestação de racismo (no caso do ministro de estar a referir à origem àrabe do jovem), mas que, para Brice Hortefeux, se trata apenas uma inocente referência ao facto de ele e o jovem serem ambos da região de Auvergne. O governo francês, bem como o jovem luso-árabe, saíram em apoio do ministro; a oposição e outros sectores pedem a sua demissão.
Para o que aqui me interessa, muito mais do que o ministro disse ou quis dizer, embora reconheça que uma figura pública não pode dar-se ao luxo de exprimir certos comentários com ligeireza (todos nos lembramos do caso do ministro português que foi demitido, e bem, por ter deixado em público uma anedota de muito mau gosto), importa começar por discutir esta cada vez mais recorrente utilização de filmes obtidos em momentos informais e passá-los na internet, sem o consentimento dos visados. O que temos visto, nos últimos tempos, releva de um "voyeurisme" irresponsável que a imprensa, com falsa ingenuidade, vai depois repescar como "notícia", sem ter de pagar o preço deontológico de ter sido ela a obtê-la, por meios condenáveis..
Mas a questão sai do campo formal e situa-se no área do conteúdo do que é dito, em certos contextos (e concedo que o do ministro francês, se se viesse a confirmar a intencionalidade de que é acusado, seria grave). .
Neste particular, subscrevo, em absoluto, o que o jornal "Libération" refere em editorial: "Parece que, a partir de agora, deveremos praticar, na vida corrente ou em política, uma espécie de policiamento da nossa linguagem que proibirá toda a espontaneidade, todo o "relaxamento" na expressão, toda a espécie de humor, desde que ele seja considerado de mau gosto, desde que afecte esta ou daquela minoria, este ou aquele grupo. Ora, num regime democrático, o comportamento quotidiano deve dispor de uma certa margem de "jogo", sem o que a liberdade de expressão passará a ser, em todo o lado, uma liberdade vigiada."
É evidente que todos concordamos que estamos num mundo novo, em que as graçolas de tonalidade racista ou discriminatória já não são, como eram no passado não muito longínquo, admitidas com um sorriso de mera condescendência, quando não de alguma cumplicidade. Muitos de nós somos do tempo em que as piadas sobre "pretos" (quem não se lembra das anedotas sobre Samora Machel?), sobre judeus ou outras recheadas de (verdadeiros ou apenas procuradamente irónicos) preconceitos faziam parte do dia-a-dia das conversas dos cafés, dos jantares ou das tertúlias. Era isso puro racismo? Era, pelo menos, uma menor atenção à sensibilidade de outros - e isso hoje é considerado inadmissível e, em muitos meios, é recebido com rejeição ou, no mínimo, com uma atitude silenciosamente desaprovadora.
Dito isto, pergunto-me se, apesar de tudo, não deveremos ter liberdade para, no nosso espaço íntimo e privado, podermos dar expressão a algumas "barbaridades", desta ou de outra natureza discursiva, sem corrermos o risco de estarmos permanentemente a ser espiados por algum "big brother", que colocará, de imediato, a nossa diatribe no YouTube. Eu, por mim, aviso desde já: não dispenso o meu direito privado à barbaridade. E assumo esta atitude com toda a clareza.

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