Há dias, numa busca nocturna nas estantes mais recônditas dessa mina bibliográfica que é a "Shakespeare and Company", o alfarrabista de livros ingleses com melhor vista para a catedral da Notre Dame, dei com o livro "The Memoirs of an Ambassador", de Freiherr Von Schoen. Nunca tinha ouvido falar da personagem: foi membro do governo alemão, embaixador de Berlim em Paris de 1910 a 1914 e a pessoa que entregou o ultimatum alemão aos franceses, nas vésperas da 1ª Guerra Mundial. O livro havia sido editado em Londres em 1922, quatro anos depois da guerra, e a minha curiosidade maior era, naturalmente "et pour cause", o capítulo "Ambassador in Paris". E decidi matá-la, por uns meros 4 euros.
Retiro do livro esta passagem, cujo teor deve ser contextualizado à época precisa em que foi escrito: "Se ela (França) tivesse querido a paz, teria sido natural procurá-la mantendo-se em "tolerably" (deixo a expressão inglesa) bons termos connosco, enquanto vizinhos; nós queríamos isso, mas a França não se decidia a isso de forma incondicional. Estava, e continuou a manter-se, irreconciliável. Não obstante vários actos de cortesia e amizade da nossa parte, não obstante muitos, e nem sempre sem sucesso, esforços nossos para se chegar a um entendimento em aspectos pontuais, em trabalhar com a França em algumas questões internacionais de ocasião, que pudessem conduzir a um "rapprochement" (em francês no texto) em termos globais, e mesmo a despeito de intervalos de acalmia, a grande distância entre nós manteve-se aberta".
Deixo-lhes esta longa citação, a meu ver significativa do modo como um responsável de uma Alemanha derrotada viu, já em 1922, momento ainda traumático da relação do seu país com a França, como ínvia introdução a uma outra história, bem mais recente, mas que envolve também ambos os países.
Nas últimas semanas, estabeleceu-se aqui por França, nas colunas do "L'Express", entre Jacques Attali e o embaixador alemão em Paris, Reinhard Schafers, uma polémica a propósito da importância da queda do muro de Berlim e do papel relativo dos alemães nesse contexto. O primeiro desvalorizou o papel de Bona num artigo e o segundo contrariou-o, numa carta à revista, dizendo-se "chocado ao constatar que o medo do 'demónio alemão' esteja assim tão presente em alguns dos nossos amigos franceses", depois de "décadas de reconciliação, partenariado e vasta cooperação" entre os dois países.
Mas é a tréplica, que o prolífico escritor e antigo conselheiro especial de François Mitterrand Attali faz no último número da revista, que aqui me importa destacar. O que diz ele? No essencial, três coisas.
A primeira é que a queda do muro, em Novembro de 1989, "não é um acontecimento histórico importante", porque desde Agosto desse ano que milhares de alemães de Leste estavam já a sair para o Ocidente através da Hungria.
A segundo é que "os alemães não tiveram nenhum papel naquela queda" e que tudo ficou a dever-se apenas à vontade de Gorbachev. E afirma isto: "Sem ele, nada se teria produzido: se as tropas soviéticas tivessem atirado sobre os manifestantes na Polónia, na Hungria ou na Alemanha de Leste, como em 1956, 1968 e 1981, tudo teria entrado na ordem, a NATO não teria naturalmente levantado o mais pequeno dedo, o muro estaria lá e a URSS sem dúvida existiria ainda".
A terceira coisa que Attali relembra - e ele considera-se a si próprio "mais do que uma testemunha (como o embaixador o havia qualificado na sua carta), um actor desta história" - são as três condições que terão sido colocadas por Mitterrand para a unificação alemã: o reconhecimento da fronteira Oder-Neisse (entre a Alemanha e Polónia), a concretização do euro e a renúncia prévia da futura Alemanha à arma nuclear.
E Attali termina "choqué, pour dire le moins", por ver um embaixador alemão recusar-se a reconhecer a existência de um "demónio alemão", afirmando que "todos nós temos os nossos demónios e não é negando-os que os exorcizamos".
Este é um debate que, até na forma, não deixa de ser muito sintomático. Por ter lugar, por ainda mobilizar desta forma pessoas como Attali e, enfim, por provar que a Europa é também, e pergunto-me se para sempre, precisamente isto mesmo.
Retiro do livro esta passagem, cujo teor deve ser contextualizado à época precisa em que foi escrito: "Se ela (França) tivesse querido a paz, teria sido natural procurá-la mantendo-se em "tolerably" (deixo a expressão inglesa) bons termos connosco, enquanto vizinhos; nós queríamos isso, mas a França não se decidia a isso de forma incondicional. Estava, e continuou a manter-se, irreconciliável. Não obstante vários actos de cortesia e amizade da nossa parte, não obstante muitos, e nem sempre sem sucesso, esforços nossos para se chegar a um entendimento em aspectos pontuais, em trabalhar com a França em algumas questões internacionais de ocasião, que pudessem conduzir a um "rapprochement" (em francês no texto) em termos globais, e mesmo a despeito de intervalos de acalmia, a grande distância entre nós manteve-se aberta".
Deixo-lhes esta longa citação, a meu ver significativa do modo como um responsável de uma Alemanha derrotada viu, já em 1922, momento ainda traumático da relação do seu país com a França, como ínvia introdução a uma outra história, bem mais recente, mas que envolve também ambos os países.
Nas últimas semanas, estabeleceu-se aqui por França, nas colunas do "L'Express", entre Jacques Attali e o embaixador alemão em Paris, Reinhard Schafers, uma polémica a propósito da importância da queda do muro de Berlim e do papel relativo dos alemães nesse contexto. O primeiro desvalorizou o papel de Bona num artigo e o segundo contrariou-o, numa carta à revista, dizendo-se "chocado ao constatar que o medo do 'demónio alemão' esteja assim tão presente em alguns dos nossos amigos franceses", depois de "décadas de reconciliação, partenariado e vasta cooperação" entre os dois países.
Mas é a tréplica, que o prolífico escritor e antigo conselheiro especial de François Mitterrand Attali faz no último número da revista, que aqui me importa destacar. O que diz ele? No essencial, três coisas.
A primeira é que a queda do muro, em Novembro de 1989, "não é um acontecimento histórico importante", porque desde Agosto desse ano que milhares de alemães de Leste estavam já a sair para o Ocidente através da Hungria.
A segundo é que "os alemães não tiveram nenhum papel naquela queda" e que tudo ficou a dever-se apenas à vontade de Gorbachev. E afirma isto: "Sem ele, nada se teria produzido: se as tropas soviéticas tivessem atirado sobre os manifestantes na Polónia, na Hungria ou na Alemanha de Leste, como em 1956, 1968 e 1981, tudo teria entrado na ordem, a NATO não teria naturalmente levantado o mais pequeno dedo, o muro estaria lá e a URSS sem dúvida existiria ainda".
A terceira coisa que Attali relembra - e ele considera-se a si próprio "mais do que uma testemunha (como o embaixador o havia qualificado na sua carta), um actor desta história" - são as três condições que terão sido colocadas por Mitterrand para a unificação alemã: o reconhecimento da fronteira Oder-Neisse (entre a Alemanha e Polónia), a concretização do euro e a renúncia prévia da futura Alemanha à arma nuclear.
E Attali termina "choqué, pour dire le moins", por ver um embaixador alemão recusar-se a reconhecer a existência de um "demónio alemão", afirmando que "todos nós temos os nossos demónios e não é negando-os que os exorcizamos".
Este é um debate que, até na forma, não deixa de ser muito sintomático. Por ter lugar, por ainda mobilizar desta forma pessoas como Attali e, enfim, por provar que a Europa é também, e pergunto-me se para sempre, precisamente isto mesmo.
Sem comentários:
Enviar um comentário