sexta-feira, 17 de setembro de 2010

Personalidade

Quando o embaixador pediu ao motorista para parar o carro, aí a uns 500 metros do hotel para onde se dirigiam para almoçar, o jovem diplomata que o acompanhava ficou um tanto surpreendido. Estavam alguns graus negativos, o caminho tinha muita neve e, na realidade, não havia nenhuma justificação para que a viatura oficial os não deixasse, confortavelmente, à porta do hotel. Porquê ficar àquela distância? Atendendo, porém, ao facto de que o seu recém-chegado chefe estava a ser pródigo em atitudes algo bizarras, o nosso jovem já nem reagiu. "Vamos a pé", comandou o embaixador, levantando a gola e arrancando, sob o vento e a neve, para o distante hotel.

O secretário de embaixada seguiu-o, naturalmente. A passada do embaixador começou, contudo, a acelerar, assumindo quase um ritmo idêntico ao dos corredores da marcha olímpica. O jovem diplomata ainda o acompanhou por algumas dezenas de metros mas, a certo ponto - o que é demais é erro! -, decidiu ir ao seu próprio ritmo, sem seguir aquela passada sem sentido, cansativa e desnecessária. Quando, por fim, chegou à porta do hotel, o embaixador esperava-o, há quase um minuto, com um sorriso leve. E foram almoçar.

Passou um ano. As relações entre o embaixador e o seu secretário estabilizaram num bom ambiente, com as manias do primeiro a serem aceites, já sem surpresas, pelo segundo. A certo ponto de uma conversa, o embaixador perguntou: "Você lembra-se, um dia, de eu ter acelerado muito o passo, numa ida a um restaurante, tendo você ficado para trás?". Claro que o secretário se lembrava desse episódio, nunca tento tido a ousadia de o referir. "Você marcou pontos nessa ocasião", disse o embaixador. "É que aquilo foi um teste. Eu tinha acabado de chegar, não o conhecia bem. Tomei essa atitude para o experimentar. Se você me tivesse seguido, no ritmo exagerado de passada que eu utilizei, isso significava que você era uma pessoa fraca. Como não me acompanhou, mantendo o seu próprio ritmo, percebi que você tinha personalidade e vontade própria. Passou no teste".

Esta é uma história verdadeira. As pequenas embaixadas são microcosmos onde se potenciam as idiossincrasias, onde por vezes se agudizam gratuitamente tensões e onde o isolamento faz vir ao de cima traços insuspeitados de caráter, às vezes mesquinhos e autoritários, outras vezes surpreendentemente generosos e delicados. São "caixas de Pandora" da personalidade de cada um, mas onde nem sempre as surpresas são as melhores.

Como Salazar dizia das pessoas que trabalhavam num certo departamento do Ministério dos Negócios Estrangeiros, e por conta desta historieta, às vezes fico sem saber se há alguns que vão para a carreira diplomática porque são assim ou se ficam assim por terem ido para a carreira diplomática...

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