Exma. senhora ministra da Cultura
Publicação: 23 July 10 10:00 AM
Dentro de dias, V. Exa. será chamada a homologar a última decisão do júri do ICA sobre o apoio à produção de longas-metragens. O que significa que tem uma oportunidade única para inaugurar um novo estilo, manifestando a sua discordância com uma lei que herdou e com um sistema que vigora, no essencial, desde 1971, altura em que uma lei marcelista, que tinha os seus méritos, remetia, no entanto, para o Estado a decisão sobre os filmes e os realizadores que mereciam ser apoiados. Não me parece que discutir os regulamentos, os critérios de avaliação e a composição dos júris nos leve a algum lado, porque o que está em causa é a própria legitimidade do Estado em chamar a si decisões sobre os méritos artísticos de projectos, como não caberia na cabeça de ninguém que o Ministério da Cultura (MC) decidisse quem deve escrever romances ou quem deve pintar quadros. O Estado tem outros mecanismos para apoiar uma actividade que tem um grave défice de mercado por sermos um país pequeno, pobre e periférico, mas, sobretudo, pelo efeito perverso da interferência directa do MC nas decisões sobre uma matéria que devia ser da competência dos produtores. A revolução que se impõe cabe em poucas linhas: basta que os canais de TV possam decidir onde querem investir as verbas que estão obrigados a cativar para o apoio ao cinema, com a obrigação de o fazerem em produtores independentes, e alargar equitativamente essa obrigação a toda a cadeia de valor que completa as receitas de um filme no mercado. Mas, só para ter uma noção do absurdo a que se chegou na sovietização do sistema, permito-_-me sugerir-lhe que olhe para os regulamentos do concurso, para a composição do júri e para os textos que fundamentam as suas decisões para perceber que estamos em pleno delírio, um delírio que há 36 anos a esta parte deu como resultado remeter-nos para a cauda da Europa em termos de frequência dos filmes nacionais: em anos normais, chegamos a ter 0,5% de espectadores contra 25% de média europeia, ou seja, cerca de 50 vezes menos do que os restantes países. Não vale a pena dizer os nomes dos jurados (estão no site do ICA), porque não é a sua idoneidade nem a sua seriedade que estão em causa, mas o princípio mesmo de delegar em pessoas que têm os seus gostos particulares decisões das quais depende o futuro de uma actividade que envolve muito dinheiro, muitos técnicos e actores e, sobretudo, a carreira de muitos realizadores. Depois, leia atentamente os ‘Critérios de selecção e respectiva aplicação’:
«Critério A – Qualidade e potencial artístico e cultural do projecto: 1. Relevância do tema; 2. Consistência do argumento cinematográfico e sua adequação à proposta estética; 3. Consistência e exequibilidade de produção do projecto.
«Critério B – Currículo do realizador: 1. Obras anteriormente realizadas; 2. Selecções oficiais, prémios e menções especialmente relevantes obtidas pelas obras anteriores do realizador em festivais de cinema».
É fácil de ver que estes critérios são um verdadeiro ‘albergue espanhol’, onde cada um leva o que quer. Mesmo o ‘Critério B’, que parece estabelecer parâmetros objectivos, é susceptível das mais arbitrárias apreciações, como facilmente verificará lendo as actas do júri.
Dou-lhe um exemplo: José Fonseca e Costa (JFC), um dos poucos autores portugueses com uma obra feita, vários êxitos de bilheteira e prémios em festivais, foi relegado para 12.º lugar, o que significa que poderá ter a sua carreira interrompida por uma decisão burocrática. O mesmo já foi feito, há anos, a António Macedo: sucessivos chumbos dos júris acabaram-lhe com a carreira, ele que era, goste-se ou não, dos poucos autores com uma obra extensa e coerente.
Não li o guião de JFC, porque não é isso o que está em discussão, mas o facto de uma actividade onde os decisores deveriam ser os que arriscam o seu dinheiro ser transformada nuns Jogos Florais alheados da realidade do mercado, ou, se o termo a chocar, do escrutínio do público a que se destinam.
Sra. ministra, aproveite a oportunidade desta assinatura que lhe pedem para apor a uma decisão arbitrária para fazer doutrina e, numa altura em que anuncia uma nova Lei de Cinema, para rever de alto a baixo o sistema de intervenção do Estado, estabelecendo como meta a conquista de uma percentagem de espectadores que nos aproxime dos países europeus. É um objectivo que todos os portugueses agradecem e que permitirá, a curto prazo, tirar o nosso cinema da subsídiodependência que nos atrofiou e reduziu à insignificância. Com os melhores cumprimentos, António Pedro de Vasconcelos
Sem comentários:
Enviar um comentário