Fala-se nos gastos galopantes da saúde e respondem-nos com o Estado social; fala-se nos custos exorbitantes com o ensino público e respondem-nos com o Estado social; fala-se na insustentabilidade financeira da segurança social e respondem-nos com o Estado social. A nossa esquerda - a parlamentar, a presidenciável e a honorífica - descobriu o seu hit de Verão e daqui não vai sair. Qualquer alusão à situação crítica das finanças públicas ou ao nível insuportável que a fiscalidade atingiu junto da imensa minoria que paga a imensa maioria dos impostos é vista como uma ofensa de lesa-majestade: aos 'direitos adquiridos', ao Estado social, à Constituição de Abril e aos 'pais espirituais' deste iminente colapso nacional. O dr. Arnaut, 'pai espiritual' do SNS, declara que nem a falta de recursos pode pôr alguma vez em causa a gratuitidade e universalidade da coisa e que, mesmo "num cenário de asfixia e em última instância", a solução é evidente: criar mais um "imposto especial de saúde" (para, entre outras coisas, continuar a pagar os medicamentos comparticipados a 100%, cujos beneficiários aviam em excesso para depois os venderem a quem não beneficia da comparticipação total). O candidato presidencial Fernando Nobre também acha que a solução passa por elevar o escalão máximo do IRS (aumentado três vezes, e sempre excepcionalmente, nos últimos cinco anos) para 55% - o que, somado a todos os outros impostos directos e indirectos, aumenta a carga fiscal dos "privilegiados" para qualquer coisa como três quartos dos seus rendimentos. Manuel Alegre já decidiu centrar toda a sua campanha eleitoral na caça aos moinhos de vento dos inimigos do Estado social (e que, para desespero seu, não irá encontrar em Cavaco Silva, um verdadeiro funcionário público de mentalidade e um dos que lançaram as fundações da falência do Estado, na tal sua década de "reformas"). Jerónimo de Sousa (o último dos moicanos de 1917, agora que até o fiel Fidel acaba de desertar e despedir meio milhão de camaradas de uma vez, mandando-os reconverter-se à iniciativa privada), esse, não tem dúvida alguma: não é necessário conter o despesismo do Estado, o que é necessário é que o Estado "vá buscar dinheiro onde ele está". Francisco Louçã está de olho nos 100.000 votos dos contratados do Estado a recibo verde e propõe que sejam integrados na Função Pública, com a justificação de que, como já recebem do Estado, não haverá aumento de encargos. (Como se ele não soubesse que, no dia seguinte à integração, um quinto deles entraria logo de baixa e, de cinco em cinco anos, todos seriam automaticamente promovidos com "muito bons e excelentes"...). E José Sócrates e os seus solistas de serviço agarram os pretextos mais idiotas possíveis (inclusivamente, se alguém se propõe escrever na Constituição o que eles já fazem na prática), para acrescerem ao coro do "aqui d'el rei, que a direita dos interesses nos quer roubar o Estado social". Como se a verdadeira direita (e esquerda) dos interesses, dos grandes negócios e obras públicas do regime, que não paga nem de longe 55% de imposto, antes beneficia de toda a espécie de favores fiscais e outros piores, não fosse a coisa mais acarinhada por este poder! O que eles chamam Estado social, traduzido financeiramente na despesa corrente do Estado (isto é, despesa não produtiva) aumenta a um ritmo de 2,5 milhões de euros... por hora! Vai já nos 87% do PIB, isto é, de toda a riqueza produzida anualmente no país! O serviço da dívida pública rouba-nos todos os anos milhares de milhões que poderiam servir para financiar o desenvolvimento ou serem libertados da carga fiscal e entrarem no circuito económico, gerando emprego e riqueza. E eles acham que é uma ofensa perguntar como é que isto se vai pagar no futuro próximo e distante, e até quando poderemos continuar a caminhar para o abismo sem cairmos lá dentro! Temos 3,5 milhões de pensionistas; 2,2 milhões de estudantes, do pré-primário ao universitário, subsidiados pelo Estado, através de propinas simbólicas e apoios da Acção Social Escolar; temos 700.000 funcionários públicos, não incluindo os funcionários da profusão de empresas públicas e municipais, institutos públicos, fundações públicas e sei lá que mais; e temos 300.000 desempregados a receberem subsídio de desemprego, mais os que recebem RSI. Façam as contas: são 7 milhões de portugueses, dois terços da população, que vivem integralmente dependentes ou subsidiados em grande parte pelo Estado. Nem Esparta! Já nem Cuba. Talvez só a Coreia do Norte. Mas eles não querem saber disso. Até Fidel Castro já percebeu que "não funciona", mas eles não. Agarrados a slogans e verdades ideológicas ultrapassadas pela realidade, pela demografia e pela economia há mais de vinte anos, a nossa esquerda está a conquistar para si um lugar no museu e um no panteão para todos nós. Aos avisos do FMI, da chanceler Merkel, do ministro das finanças alemão e mesmo dos nossos economistas, eles respondem a uma só voz: Estado social. Quarta-feira passada, o Estado social de que falam, também conhecido por República Portuguesa, já só conseguiu colocar mais um empréstimo internacional a doze meses a um juro de 3,70% (quase três vezes a taxa de inflação e quase quatro vezes a taxa de crescimento do PIB prevista em 2010). E, mais preocupante ainda, a procura atingiu o nível mais baixo de sempre. Isto, acho que qualquer um percebe: os investidores cada vez acreditam menos na nossa capacidade de pagar a dívida acumulada e que não pára de aumentar e, por isso, já só nos compram dívida a juros cuja taxa é, em si mesma, um obstáculo determinante à capacidade de pagar. Mas eles não querem saber disso. O que os ofende, vejam lá, é que Portugal (tal como os outros 26 membros da UE) tenha de passar a submeter anualmente a sua proposta de Orçamento ao crivo de Bruxelas. Justamente para evitar batotas no cumprimento do Plano de Estabilidade e Crescimento ou batotas como as que a Grécia praticou alegremente durante anos, falsificando as contas públicas até ter de lançar um SOS à Europa, para evitar uma falência iminente. Manuel Alegre, o PCP, o BE, todos acham que isto é um atentado à soberania nacional, à República do 5 de Outubro, ao Portugal de Quinhentos e ao galo de Barcelos. Pelo contrário, a mim parece-me que foi assim que desapareceu o Portugal de Quinhentos e que desabou a República do 5 de Outubro e acabámos a vender galos de Barcelos. Que raio de noção de soberania nacional é essa que vive de empréstimos e esmolas de Bruxelas mas não quer dizer em que vai gastar o dinheiro, e que vive de esmifrar até ao osso os raros pagadores de impostos para sustentar um Estado que gasta mais de metade de toda a riqueza produzida no país? Queria dizer uma coisa a esta improvável esquerda. Somos, seguramente, e mesmo após tanto e tão continuado despesismo público, um dos países ainda mais atrasados e injustos entre as nações desenvolvidas. Mas, a essa injustiça estrutural, e supostamente para a combater, estamos a acrescentar outra: não uma luta de classes, mas uma luta de gerações. Os 'pais espirituais' e guardiões da fé do tal Estado social pertencem a uma geração privilegiada: dispõem de saúde para si e ensino para os seus filhos, "tendencialmente gratuitos"; recebem reformas do Estado, depois de terem trabalhado 36 ou 40 anos e têm uma esperança de vida paga próxima dos 80 anos. Mas os seus filhos e netos não vão ter nada disso: vão, sim, ter de pagar a dívida deixada por eles para sustentarem em vida o seu Estado social. E vamos ver se ao menos deixam a democracia de pé...
Se isto é justiça social, se isto é a esquerda moderna, que venha antes Fidel Castro, que é mais inteligente e, embora tardiamente, se dá ao trabalho de fazer contas. Miguel Sousa Tavares - Expresso.pt
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