segunda-feira, 9 de dezembro de 2013

MANDELA E OS PORTUGUESES VISTOS EM 1991

JPP

 

Reproduzo aqui o artigo que publiquei no contexto do primeiro encontro que tive com Nelson Mandela.

 

Mandela desceu do quarto onde estivera a repousar, e entra devagar, alto e franzino, cabelos brancos, a uma semana de fazer 73 anos, a única pessoa na sala de black tie . Os portugueses do Cabo que o convidaram para jantar são homens de negócios feitos a pulso, nas empresas de pesca, de reparação naval, de equipamentos, na importação de cortiça para os vinhos de Stellenbosch , nos mil e um restaurantes e supermercados que povoam qualquer cidade sul-africana de nomes portugueses . Não são gente dada à "política" , e dela pensam apenas ter a "experiência" trágica de Angola e Moçambique onde perderam haveres, onde viram a guerra civil destruir o património deixado pela colonização branca e mesmo, nalguns casos, onde viram morrer amigos e familiares, em suma, onde perderam raízes e "história". Como se pode compreender deve haver poucas comunidades no mundo que tenham täo pouca simpatia pelas experiências de engenharia social feitas em nome do progresso, da igualdade, do socialismo e temem que o mesmo se repita na África do Sul. Suspeitam acima de tudo do ANC , irmão próximo da FRELIMO e do MPLA , e cujas posições sobre as nacionalizações e o socialismo lhes parecem prometer um futuro de devastação idêntica. 

 

O encontro entre a comunidade portuguesa e Mandela é o primeiro e faz-se sob tensões cruzadas: entre os portugueses que querem falar com o ANC e aqueles que consideram este acto uma "traição", entre os conselheiros de Mandela que não gostam dos portugueses e do papel de Portugal como um moderador indesejado da "revolução" no sul de África e aqueles que desejam mudar a imagem dura do ANC e que veem naqueles homens de negócios um interlocutor ideal para chegar a uma parte da comunidade branca que está entre a "tribu branca" afrikaner e as comunidades indianas e "castanhas" . Mas, quando Mandela entrou na sala, após uma pequena hesitação puseram-se em pé em uníssono a bater palmas, abrindo alas para que esse homem alto e frágil passasse. Depois bateram-lhe sempre palmas, mesmo quando Mandela confirmou no seu discurso algumas das coisas que todos pretendiam esconjurar. Para os portugueses do Cabo tornou-se claro que o encontro com o homem acabou por valer mais do que as suas palavras, mas esta contradição revela as encruzilhadas em que se encontra hoje a política sul-africana. 

 

O ambiente na política sul-africana é hoje mais dominado pela afectividade do que pela razão e nada há de politicamente mais equívoco e perigoso do que a afectividade . Verdade seja dita que é também às vezes dessa força da afectividade que surjem soluções para problemas aparentemente sem saída racional. O papel de Mandela nessa política é disso um exemplo perfeito e a sua figura carismática e autoridade pessoal representam um factor sui generis que tanto pode conduzir num sentido de moderaçäo como para um impasse, no qual a sua figura sirva de cobertura para uma politica radical que todos sabem näo ter futuro , mas que pode ter presente bastante para fazer.

 

Quando foi libertado, Mandela encontrou uma nova geração de militantes do ANC e uma organização muito diferente daquela que tinha conhecido, embora os primeiros passos para essa evoluçäo tivessem sido os últimos que Mandela deu antes de ser preso. Entre 1961 e 1963, data dos Rivonia Trials que o iriam condenar, o ANC ainda sob a direcção de Mandela , afasta-se das suas origens de movimento de massas pacifista e näo violento, cuja inspiração se encontrava na organização irmã do Partido do Congresso indiano ou no movimento de direitos cívicos dos negros americanos , para uma política cada vez mais centrada na luta armada . A fundação do braço armado do ANC , o Umkhonto we Sizwe , iria aprofundar uma lógica de luta armada que progressivamente asfixia organizacionalmente todos os outros instrumentos de acção política. Esta evolução vai a par com um significativo maior envolvimento da URSS em Africa e, neste contexto, a combinação entre a clandestinidade organizacional, a luta armada com as suas inevitáveis dependências e apoios, a constituição de uma importante comunidade exilada em diversos países africanos e europeus , tudo isso explica o crescente domínio das estruturas do ANC pelo Partido Comunista Sul-Africano .

Daí que Mandela encontre hoje o ANC numa encruzilhada em que a herança do passado próximo - o domínio do PC Sul-Africano da estrutura do ANC , o radicalismo dos "camaradas" , o programa económico e social marxisante , e uma organização de guerrilha que não se quer dissolver - , ainda "faz" mais a organização do que as enormes oportunidades políticas que esta tem à sua frente no processo democrático .Os dilemas säo compreensíveis - como os partidos brancos, embora muito menos do que eles, também o ANC tem que perder alguma coisa para participar no processo de democratização e é natural que , ainda por cima na euforia de uma situação em que "parece" que se pode ganhar tudo , haja resistências a abandonar, em nome da democratização , instrumentos de poder político . É o caso do entendimento do ANC como "movimento de libertação", que tem como corolário a assunção de uma legitimidade especial e a consequente tentativa de hegemonia da representação negra. Como a OLP nos territórios ocupados por Israel, esta fórmula política destrói toda a pluralidade da representação política que lhe seja exterior, o que normalmente conduz a uma política de violência e de extermínio dos "colaboradores". Os conflitos com o Inkhata , que não aceita esta hegemonia , tiveram esta origem e se o ANC parece hoje a principal vítima da "violência" nem por isso deixou de criar as condições para o seu aparecimento . Foram os "camaradas" nos townships que começaram as execuções populares e os zulus do Inkhata seguiram-lhes as passadas. Como de costume a imprensa internacional ligou pouco à violência "política" do ANC e explodiu de indignação com a violência "tribal" do Inkhata .

 Mas, se o ANC não abandona a classificação de "movimento de libertação" a favor da sua inserção no jogo democrático como um partido político em competição com outros, tal também tem muito que ver com a circunstância de organizacionalmente o ANC ser pouco mais do que a estrutura do PC Sul-Africano. O papel do PC Sul-Africano, dirigido por um velho comunista puro e duro Joe Slovo , e que ainda tem no seu seio alguns admiradores públicos de Staline, já não é tanto o de pretender impor uma qualquer "ditadura" . Partidos comunistas como este não exercem a sua acção tanto por propostas "revolucionárias" na ordem política, mas através de programas e soluções "económicas" associadas a "acções de massas" que acabam por funcionar como limitadoras das liberdades políticas e dar origem a soluções políticas totalitárias. É por isso que o debate sobre as soluções "económicas" do ANC é o debate crucial no plano político e aquele que irá definir o futuro da organização.

Os portugueses do Cabo sabiam-no, como diriam os marxistas, pelo único "critério de verdade", a "prática" . O encontro com Mandela confrontou-o com essa "prática" e dias depois numa entrevista ao Star de Joanesburgo, numa referência implícita aos encontros que tivera com os portugueses, afirmava que na Africa do Sul não se iria passar nada de semelhante ao que acontecera em Angola e Moçambique. Vamos ver.

(Publicado no Diário de Notícias de 1 de Agosto de 1991.)


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