quinta-feira, 12 de dezembro de 2013

Jornalismo: a grande mutação.


MANUEL MARIA CARRILHO

Um dos domínios em que hoje melhor se vê tudo a mudar é sem dúvida no jornalismo: está tudo em transformação, mas ainda sem se perceber bem quais serão as novas formas que virão a impor-se no futuro, quais os seus valores e os seus objetivos.
Foi por isso bem escolhido o tema com que o semanário Expresso decidiu fechar as comemorações dos seus 40 anos, que incidiu na pergunta sobre se "o jornalismo (que temos) é útil à democracia". O debate, pelas várias descrições que pude ler, andou muito em torno da responsabilidade dos media na degradação do regime democrático português e das suas mais ou menos visíveis relações com o poder político.
É um tema decisivo para quem se interesse pela qualidade e vitalidade da democracia, que, a meu ver comporta, para lá das suas implicações mais imediatas, duas dimensões fundamentais: a primeira decorre do impacto das novas tecnologias no jornalismo tradicional. A segunda incide na legitimidade e na especificidade do jornalismo no novo mundo em que hoje vivemos.
Quanto ao impacto das novas tecnologias no jornalismo, a internet veio acabar tanto com o ritual quotidiano da leitura do jornal como com a experiência que esse ritual implicava e com as ligações que criava. Vai longe o tempo em que Hegel podia caracterizar a leitura do jornal como a oração matinal do cidadão moderno. Hoje, é a parafernália tecnológica que define esse ritual, dos alertas no telefone portátil à consulta nos tablets, passando pelo envio ou receção de e-mails, sms, etc., o que conduz a uma experiência completamente distinta da que propiciava o jornal clássico.
Isso acontece porque o digital se foi impondo, sem grande resistência nem alternativas consistentes, como o modelo a seguir: a qualidade das imagens, as reportagens de fundo, a originalidade das crónicas, todas estas características foram sendo submetidas ao império da brevidade, da simplicidade e do conformismo, dando forma a uma espécie de clic-jornalismo.
A sociedade Journatic, sediada em Chicago, produz semanalmente cinco mil artigos, redigidos pelo seu dispositivo tecnológico, que distribui por diferentes grupos da imprensa, que os adaptam ou reescrevem como entendem, e que depois são publicados em cerca de trezentos jornais sob nomes fictícios, como no Houston Chronicle se descobriu quando se investigou a identidade do "autor" de centenas de artigos, um tal Chad King.
Não admira, pois, que neste contexto se prognostique cada vez mais intensamente o fim dos jornais tradicionais, que enfrentam não só o desafio de responder às novas características e às novas expectativas dos cidadãos das sociedades contemporâneas, mas também de encontrar um novo modelo económico para a sua atividade.
Tudo vai depender, contudo, a meu ver, do modo como se perspetive a segunda dimensão que referi, a da especificidade e da legitimidade do jornalismo no mundo de hoje. E isso passa por manter, reestruturando-a, uma clara distinção entre o sistema mediático no seu conjunto, como fluxo contínuo de sons e de imagens, e um jornalismo que faça da palavra o seu elemento distintivo, quer se trabalhe em papel ou em suporte digital.
Opor o jornalismo e a internet é um erro que dá origem a muitos equívocos. Deve-se evitá-lo, o que passa por fazer do jornalismo uma atividade que se legitima e especifica através da sua diferenciação face à generalizada cultura da imagem, que é vivida como um consumo ininterrupto de conteúdos audiovisuais que mistura e confunde o que é informação com tudo aquilo que "se diz", com tudo o que é, digamos, tornado público, venha de onde vier, sem qualquer escrutínio quanto ao seu valor ou rigor.
Nesta perspetiva, o jornalismo deve antes reforçar-se como uma atividade que não só reporta os factos como é capaz de os perspetivar, de os analisar e de os tornar inteligíveis para os cidadãos. Que sabe equilibrar a narração dos factos com a sua efetiva compreensão, fazendo a indispensável seleção entre o que é necessário e o que é inútil, o que explica e o que diverte, etc.
É de resto isto que faz ainda da imprensa escrita, apesar da queda das vendas e dos constantes desafios tecnológicos, o meio de comunicação de maior influência nas sociedades contemporâneas, o que explica, por exemplo, a compra do Washinghton Post por Jeff Bezos, o patrão da Amazon.
No fundo, como a jornalista Elisabeth Lévy diz, o jornalismo renascerá, ou não, das cinzas conforme ele consiga, ou não, assumir como exigência nuclear do seu trabalho o imperativo da informação e da explicação, da contradição e do debate. Porque é por aí que passa, como bem explicou M. Castells no seu livro Communication Power, o poder mais fundamental de todos: o de moldar o pensamento.
O jornalismo enfrenta hoje desafios novos, quer quanto ao modelo económico que o sustente quer quanto à definição das suas características e objetivos. O que me parece fundamental é que se compreenda que o que o internauta procura na internet e o que o leitor procura num jornal (em papel ou no ecrã) são coisas substancialmente diferentes, e que é da compreensão desta diferença e das consequências que se saiba tirar dela que depende o futuro do jornalismo.
Jornalismo: a grande mutação - Opinião - DN

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