domingo, 29 de novembro de 2009

Todos escutam e ninguém entende.

Passados oito dias, permanece instalada a grande confusão político-jurídica (sobretudo jurídica) sobre as escutas telefónicas entre José Sócrates e Armando Vara, interceptadas e gravadas no âmbito da investigação 'Face Oculta'. Oito dias depois, o anunciado esclarecimento do procurador-geral não chegou e tem sido substituído por uns comunicados debitados a conta-gotas e que, de tão cuidadosamente redigidos, apenas conseguem aumentar a incompreensão geral. Mesmo o professor Costa Andrade, autoridade quase suma em matéria de direito criminal e processual criminal, deixou-me ainda mais baralhado depois de ler o seu artigo no "Diário de Notícias".  Tudo lido e relido, não alcancei ainda: a) - se a autorização para escutar e gravar o PM, apanhado 'por contágio' no telefone de Armando Vara, deveria ter sido dada prévia ou posteriormente, após a primeira intercepção; b) - se essa autorização pertencia ao presidente do Supremo ou à secção criminal do tribunal; c) - se há ou não recurso dela; d) - se o PGR, ao receber as "certidões" contendo as escutas, deveria tê-las logo despachado ou antes enviado ao presidente do Supremo para que este as despachasse, como fez; e) - se, recebido o despacho do presidente do Supremo, tem também ele de despachar ou não tem, e se está ou não obrigado a seguir o teor do despacho recebido; f) - se tem ou não prazo para o fazer; g) - se o despacho do presidente do Supremo declarando "nulas" as escutas é ou não válido; h) - se vale apenas para as escutas já realizadas ou também para futuras; i) - se, mandadas por este destruir as "certidões", devem ser destruídas apenas as cópias das gravações que vinham juntas ou também os originais. A confusão e a trapalhada jurídica são totais e indecifráveis, tanto que os próprios 'mestres' estão longe de se entender entre si e os jornais transformaram-se em apêndices das melhores sebentas de direito processual criminal. O que, todavia, não esclarece ninguém. Já, politicamente e como aqui previ a semana passada, o juízo do 'povo' está feito e basta consultar alguns blogues e comentários às notícias para o aferir: o PGR e o presidente do STJ arranjaram forma de entre os dois mandarem para o lixo as escutas "comprometedoras" envolvendo o PM. Convicção tanto mais enraizada quanto se fez saber que o procurador e o juiz do processo concluíram ambos pela existência de suspeitas de cometimento do "crime de atentado contra o Estado de Direito", fundamentado na audição das referidas conversas. E o qual - fizeram-nos saber também - se terá consumado através de uma ou mais conversas onde Sócrates e Vara terão falado sobre o futuro da TVI. Logo, sigam o raciocínio: se o PM fala sobre o futuro da TVI é porque queria interferir nele; e, se queria interferir nele é porque queria silenciar o "Jornal de Sexta", que estimava, e, aliás, com razão, ser um jornal ad hominem, dirigido contra ele; logo, se queria silenciar o "Jornal de Sexta" é porque queria atentar contra "a liberdade de informação"; e, logo, se era isso que no fundo queria, estava a atentar contra o Estado de Direito. Sem embargo de já aqui ter escrito o quanto me cheira mal esta 'Face Oculta' e a sensação que tenho de que, desta vez, a investigação foi muito bem conduzida, confesso que esta excrescência lateral do crime de atentado ao Estado de Direito, descoberto entre as escavações da 'Face Oculta', me deixa um pouco perplexo. É que, lendo o texto da lei, parece-me claro que o legislador quis contemplar coisas bem mais graves do que a eventual conversa privada de um primeiro-ministro acerca da venda de um órgão de informação privado. A mim parece-me que na cabeça do legislador estavam coisas mais sérias, como um atentado ao Presidente, o sequestro do Parlamento, sei lá, talvez um golpe de Estado.  Mas, mesmo admitindo que nessa conversa privada José Sócrates tenha desabafado com o amigo Vara o quanto gostaria de ver acabado o "Jornal de Sexta", se isso é crime de atentado ao Estado de Direito, então o que dizer da afirmação (pública e não privada) da drª Manuela Ferreira Leite, desabafando o quanto gostaria de poder suspender a democracia e as liberdades por seis meses? Entretanto, e como vem sendo hábito, no meio de tudo isto, continua a passar-se ao lado de uma questão, a meu ver, essencial ao Estado de Direito: a banalização das escutas telefónicas. Aquilo que deveria ser um meio de investigação acessório e excepcional - pela violência que representa a devassa da intimidade da correspondência de cada um - tornou-se não apenas o meio habitual de investigação mas o principal, quando não único. Se a PIDE ressuscitasse hoje não ia acreditar que aquilo que então representava um dos mais denunciados abusos do regime ditatorial se transformou hoje no meio por excelência de investigação criminal em democracia. Não digo que tenha sido o caso, nesta investigação, mas a importância que rapidamente adquiriram as escutas onde intervém José Sócrates mostra até que ponto as pessoas passaram a aceitar tranquilamente que os fins justificam quaisquer meios. E fico siderado quando oiço deputados do PSD afirmarem que, a fim de "esclarecer tudo", José Sócrates deveria, ele próprio, divulgar o conteúdo das conversas privadas que lhe foram escutadas. Apesar de tanto o presidente do Supremo como o procurador-geral da República serem de opinião que ele não é suspeito de crime algum e apesar de se saber que apenas foi escutado por arrasto. Sim, eu sei que vivemos tempos em que a devassa e até a auto-exposição da privacidade é fomentada e, às vezes até, paga pelos media. Mas é claro que ninguém está interessado em conhecer o teor das escutas feitas ao sr. Anatoli Kirilenko, putativo chefe de uma rede da máfia do Leste, em Portugal: o que a turba quer é conhecer o conteúdo das conversas e da intimidade dos 'famosos' ou poderosos. Porque, quanto mais não seja, isso já é um castigo por serem famosos ou poderosos. E é por isso que já vimos integralmente publicadas em jornais o teor de conversas escutadas a 'suspeitos' famosos que, afinal, nem sequer viriam a ser pronunciados em juízo. E é por isso que, a propósito dos métodos investigatórios seguidos no 'caso Maddie', o "Times" comentou, com espanto, que, em Portugal, a investigação criminal ainda se baseava no princípio da auto-incriminação dos suspeitos: ou através de escutas ou através da confissão. Porém, o óptimo é inimigo do bom. O que a turba quer a justiça não pode querer, sob pena de se automutilar. A 'pista' José Sócrates/atentado ao Estado de Direito outra coisa não vai conseguir do que perturbar o decurso das investigações da 'Face Oculta', semear a confusão e desviar as atenções do essencial. Tem sido sempre assim: suspeitas de crimes com alguma tangência no mundo político são invariavelmente apropriadas como matéria política pelos media e pela opinião pública e com o contributo decisivo da própria justiça - fomentando, sem vergonha alguma, as 'fugas' que lhe convém para a imprensa. E, no final, tudo acaba invariavelmente no mesmo desfecho: o arquivamento judicial e a condenação na praça pública. Por uma vez, seria bom que a 'Face Oculta' não viesse a ser mais do mesmo. Texto publicado na edição do Expresso de 21 de Novembro de 2009.

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