A revista alemã "Der Spiegel" tem uma tradição estabelecida de rigor e de objectividade e de ser uma escola de reportagem por onde passaram os maiores nomes do jornalismo alemão. Quando a "Spiegel" investiga e publica, as coisas devem ser levadas a sério. Isso quer dizer que a história da compra dos submarinos para a Armada portuguesa, que a "Spiegel" agora publicou, tem tudo para ser levada a sério - como indicam já as duas prisões de quadros da Ferrostaal, a empresa fornecedora dos submarinos, por parte do Ministério Público alemão. E, se isto já vai assim na Alemanha, preparem-se para as suas repercussões em Portugal (que, todavia, podem muito bem acabar em nada, porque aqui quem investiga é o nosso prestigiadíssimo Ministério Público...). Mas, se os alemães puxarem pela carroça, pode ser que a caravana lusa tenha de seguir atrás. E, então e entre outras coisas bem salutares, talvez caia de vez a máscara sobre esse verdadeiro cancro da democracia portuguesa que é o papel determinante dos escritórios da advocacia de tráfico de influências - sobre o qual já tenho escrito diversas vezes. Essa indecente transumância entre a função de governantes e sócios dos escritórios - ora negociando ora outorgando os grandes negócios com dinheiros públicos.
Vamos ao contexto: em minha opinião, Portugal não precisava nem precisa de submarinos para nada. As tarefas que, pela geografia e geoestratégia, cabem à nossa marinha de guerra, dispensam por completo a existência de uma arma de submarinos. A menos que se aplique aqui a fatal lógica do TGV (temos de o ter porque os outros o têm e não podemos, por orgulho nacional, ficar fora da 'rede europeia de alta velocidade'), qualquer um percebe que o que a nossa marinha deve ter são os instrumentos adequados para vigiar as 200 milhas e a ZEE: corvetas, lanchas rápidas, aviões de reconhecimento aéreo. Impingiram-nos os submarinos com o argumento NATO: era preciso vigiar as andanças das fragatas soviéticas no Atlântico Norte e a nossa contribuição para tal era indispensável. Entretanto, antes ainda do concurso, acabou a União Soviética e extinguiu-se a necessidade imperiosa de controlar os seus navios no Atlântico. Ou, pelo menos, deixou tal esforço de ser exigível a um pequeno país como o nosso, sem recursos para fazer figura de potência militar, dotando-se para isso de armamento inútil para a sua própria defesa: seria o mesmo que exigir aos belgas que tivessem um porta-aviões só porque isso dava jeito à NATO. Passou-se então ao segundo argumento: se não substituíssemos os velhinhos submarinos da classe Delfim antes que eles fossem para a sucata, extinguir-se-ia, com eles, a arma de submarinos - e então deixaria de haver oficiais de submarinos. O argumento era insustentável: com todo o respeito e admiração por quem gosta de fazer profissão de andar fechado num submarino nas profundezas do mar, bastava fazer contas ao custo dos novos submarinos e dividir pelo número de oficiais da arma para se chegar à conclusão de que o custo de cada marinheiro destes era perfeitamente absurdo e injustificável. Quem não tem dinheiro não pode ter vícios desses: foi assim que comprámos também viaturas blindadas que não têm onde actuar, aviões de combate F-16 cujo destino é o hangar e super-helicópteros para os quais não há manutenção. Sustentámos treze anos de guerra em três frentes de África com material hoje completamente obsoleto: carros Chaimite, espingardas G-3, aviões Fiat e helicópteros Alouette. E só perdemos a guerra politicamente e porque politicamente estávamos fora da razão e da história. Mas, militarmente, nunca a perdemos - embora, na Guiné, a superioridade de armamento da guerrilha (os mísseis terra-ar) tivesse conduzido a uma situação dificilmente ultrapassável. E agora, que não temos nem inimigo nem guerra expectável, é que temos de nos dotar de armamento sofisticado? Podem responder que temos sempre as missões da NATO ou da UE, a que não nos podemos furtar, e é verdade. Mas basta ver as missões que nos são confiadas no Iraque, no Kosovo ou no Afeganistão, para concluir facilmente que não precisamos para nada de F-16 ou de Pandur - e muito menos de submarinos.
Pouco antes de Durão Barroso ter chegado à chefia do Governo, fui convidado para um almoço no Alfeite, onde estavam também ele e o professor Adriano Moreira. A ementa do almoço era sensibilizar os representantes da 'sociedade civil' para quanto a Armada precisava de submarinos novos. Depois do almirante chefe de Estado-Maior ter explicado os seus pontos de vista, falou o prof. Adriano Moreira, igual a si mesmo: brilhante e inconclusivo. Depois, falou Durão Barroso, também igual a si mesmo: se quiserem os submarinos, eu sou a favor; se não quiserem, também sou a favor. No fim, falei eu e disse o mesmo que agora: que não via utilidade alguma para o país naquele caríssimo brinquedo de guerra. Comeu-se lindamente, como sempre se come na Marinha, e, nas despedidas, o almirante disse-me que eu tinha sido igual a mim mesmo e por isso é que me tinha convidado. Foi quando eu percebi que já não havia nada a fazer: vinham aí os submarinos.
Mais tarde, quando Durão Barroso chegou a primeiro-ministro e Paulo Portas foi nomeado ministro da Defesa, contou-me que o primeiro dossiê que tinha encontrado em cima da mesa, no primeiro dia de trabalho, era o processo dos submarinos, que já só esperava pela assinatura final do ministro. Ele desconfiou e resolveu estudar o dossiê, antes de assinar. Não posso contar o mais que me contou, mas posso contar o que pensei: aquilo era uma bomba ao retardador, que, fizesse ele o que fizesse, indo em frente, mais tarde ou mais cedo lhe explodiria nas mãos. Só havia dois candidatos: franceses e alemães, mas não eram precisos mais. Era como a compra de aviões pela TAP: só havia dois candidatos, a Boeing e a Airbus, mas a coisa não dispensou alta corrupção, que o nosso eficientíssimo Ministério Público não conseguiu provar, apesar de ter todos os indícios na mão. Onde há compras de armas há sempre dinheiro que chegue para corromper, traficar influências e inventar intermediários a quem pagar comissões escandalosas em troca de encontros ou almoços - como agora consta acerca do cônsul honorário em Munique. É tal e qual como o tráfico de droga: há armas vendidas? Há dinheiro sujo no meio. Sempre, sempre. Inevitavelmente. Portas anulou o desfecho já programado, reduziu de três para dois os submarinos a comprar e introduziu no contrato uma série de contrapartidas a favor da indústria portuguesa, a serem concretizadas pelo fabricante-vendedor. Mas agora sabemos que nada foi executado e que há um cônsul, um militar de alta patente e um escritório de advogados lisboeta metidos ao barulho. Mas o que esperavam?
José Miguel Júdice disse há tempos que nenhum grande contrato do Estado deveria ser consumado sem recurso a um dos grandes escritórios de advogados do país (Lisboa). Eu digo exactamente o contrário: nenhum contrato do Estado deveria envolver escritórios de advogados, nenhum parecer lhes deveria ser solicitado; nenhuma consultadoria lhes deveria ser confiada. Eles que se amanhem, já que fazem tanta questão em se afirmarem profissionais liberais; e, quanto ao Estado, tanto quanto sei, ainda tem as suas auditorias jurídicas, que é para isso que servem. De imediato, poupar-se-iam umas centenas de milhões de euros. A prazo, a democracia ficaria infinitamente mais limpa. Texto publicado na edição do Expresso de 2 de Abril de 2010.
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