1 O SAP de Valença foi fechado a partir das 22h - como trinta e dois outros nos últimos três anos. Tinha uma média de 1,7 utentes por noite, os quais mobilizavam um médico, um enfermeiro, um administrativo. Três funcionários do Estado a receber horas extraordinárias e nocturnas a noite toda, para atenderem 1,7 doentes ou autodeclarados como tal: era, provavelmente, a consulta mais cara do país. Se os casos atendidos fossem graves, o serviço servia de muito pouco ou pior: fazia perder tempo a encaminhar o doente para outro lado, onde houvesse condições para o atender; se não fosse grave, o atendimento nocturno servia apenas para retirar um médico do serviço de dia, onde há mais gente para atender. Como não somos o Dubai e não temos dinheiro para manter 24 horas por dia um médico, um enfermeiro e um funcionário ao serviço de cada cidadão, o SAP de Valença fechou. Agora, a população diz que vai a Tuy, em Espanha, logo ali ao lado e onde dizem que são recebidos a qualquer hora e sem sequer pagar taxas moderadoras. Agradecidos, hastearam bandeiras espanholas na vila e dizem que só voltam a ser portugueses quando reabrir o serviço nocturno do SAP. Eu, que dou ao meu país 60% do que ganho a trabalhar, em impostos directos e indirectos, tenho um recado para os de Valença: por favor, continuem espanhóis.
2 Mira Amaral, que foi ministro da Indústria, considera "obscenos" os 3,1 milhões de euros que António Mexia ganhou no ano passado à frente da EDP, empresa cujo accionista principal é o Estado. Eu também considero. Mas tenho uma dúvida: este é o mesmo Mira Amaral que, em 2002 foi nomeado administrador do banco público Caixa Geral de Depósitos, preenchendo a quota política do PSD, e saiu um ano e meio depois, com uma pensão de reforma vitalícia de 18.000 euros por mês? Se é o mesmo, como suponho, não percebo a sua noção de obscenidade: Mexia, como toda a gente sabe de há muito, é um homem que tem servido todos - Cavaco, Durão, Santana, Sócrates. Como ele há outros mais, que fazem parte desse selecto clube de crânios que vivem luxuosamente à conta das quotas político-partidárias nas empresas públicas ou empresas privadas com ligações privilegiadas ao poder político. Se há coisa que Mira Amaral não ignora é como funciona o sistema.
3 Ele, Mira Amaral, foi também o ministro que propunha eucaliptizar o país inteiro em defesa do nosso "petróleo verde". Mas, há uns tempos, segundo relatou o "Público", converteu-se às energias alternativas e, inspirado no exemplo norueguês, apaixonou-se pela ideia das eólicas em offshore: moinhos de vento no mar. E fez o que a nossa "iniciativa privada" costuma fazer nestes casos: foi pedir apoio ao Governo. Mas Manuel Pinho respondeu-lhe que não, que era muito caro. E ei-lo agora transformado em inimigo das eólicas e das energias alternativas e defensor da recorrente ameaça nuclear. Junto com gente como Miguel Cadilhe, João Salgueiro, Patrick Monteiro de Barros (um luxuoso grupo de benfazejos!), quer-nos convencer de que o nuclear é que será a energia do futuro. Contradição? Não: enquanto cidadão, explica ele, pode discordar de uma política; mas, enquanto empresário, pode aproveitar as oportunidades de negócio dessa mesma política. Não sendo, pois, nem por patriotismo nem por convicção, resta o empreendorismo. Ficamos mais bem esclarecidos sobre as vantagens do nuclear.
4 Mas os 3,1 milhões de Mexia, de facto, dão que pensar. Não apenas por fazer dele o terceiro presidente de uma eléctrica mais bem pago da Europa (à frente dos seus homólogos espanhol e francês, por exemplo), mas também pelas justificações indecorosas para tal. Prémio por lucros? Mas que pateta não conseguiria lucros a gerir uma empresa que funciona em monopólio, vendendo um bem essencial como a electricidade? Prémio por ter ultrapassado os resultados anunciados? Fácil: basta anunciar por baixo e cumprir por cima.
Tudo isto, esta alta gestão das grandes empresas é, aliás, um mundo à parte, fechado nos seus rituais e tradições. E a questão dos prémios é essencial. Tão essencial, que ocupa grande parte das decisões estratégicas das empresas e tão sensível que elas têm de ter uma "comissão de vencimentos", cujos membros, remunerados, têm a seu cargo a espinhosa tarefa de decidir quanto ganham os outros acima deles, na administração. É, de facto, um luxo à parte. Mas compreende-se a importância: foram estes gestores de luxo, nos Estados Unidos, e os seus magnânimos prémios de gestão que conduziram à ambição irracional de lucros desmedidos e ao crime de irresponsabilidade administrativa que mergulhou o mundo inteiro numa crise sem precedentes. Foi essa filosofia de gestão que directamente condenou ao desemprego e ao desespero milhões de seres humanos que apenas queriam o seu modesto posto de trabalho, sem prémios, nem ordenados de luxo, nem reformas de sonho.
Nos Estados Unidos, Obama tenta que, ao menos, as empresas do sector financeiro cuja falência foi evitada com dinheiros públicos, não retomem alegremente a prática dos prémios pornográficos aos seus gestores, por terem regressado aos lucros... à custa do sacrifício financeiro dos contribuintes - e que ainda está por pagar. Mas até nisso ele tem encontrado resistências de toda a ordem. Dizem que assim os gestores não se sentem "motivados" - e isso é a alma do capitalismo: gestores motivados = lucros para os accionistas = prosperidade económica. O resto da história já sabemos.
5 Completando esta minha visita ao maravilhoso mundo dos grandes negócios e dos grandes empresários, vale a pena atentar no caso do conceituado empresário Artur Albarran. Aqui há uns anos, o homem apresentou ao país um projecto megalómano de construir habitação a preços de saldo, através de uma empresa chamada Euroamer, cujo boss era o ex-director da CIA e ex-várias outras coisas, Frank Carlucci. Imagine-se: Carlucci e Albarran preocupados com os pobrezinhos sem casa! Mas, por incrível que pareça, houve quem acreditasse ou fingisse acreditar, esquecendo-se até da alcunha pela qual o jornalista-empresário já era então sobejamente conhecido: Artur Aldraban. Quando a Euroamer abriu a sua sede em Lisboa (no mais luxuoso imóvel da cidade), o poder do mundo não faltou ao beija-mão: ministros, banqueiros, empresários, revistas sociais. Depois, foi o que se sabe e era de prever: uns prediozitos construídos, uns negócios meio estranhos e obscuros e, ala que se faz tarde: desapareceram todos - a Euroamer, o Carlucci e o Albarran. Para trás, deixaram, claro, vários contenciosos, como uma acusação de burla ao fisco no valor de 16 milhões de euros, através do habitual esquema das offshores, e que agora está em julgamento. A esperança de cobrança é, obviamente, zero. Mas o que seria de esperar num país onde uma empresa pública, sediada em Portugal, celebra um contrato de publicidade (enfim, chamemos-lhe assim...) com o cidadão português Luís Figo, e aceita pagar-lhe através de uma offshore?
6 Há anos que defendo isto: interrompíamos as eternas manobras das nossas fragatas, carregavámo-las com uns fuzileiros e comandos, e mandávamo-las à Guiné-Bissau, numa expedição punitiva contra aqueles narcomilitares que mantêm o país cativo, aqueles almirantes sem navios, cuja função é aterrorizar o povo e controlar o desembarque de droga. Livrávamos os guinéus daquela gente e daquela permanente chantagem e vínhamos embora, assobiando aos protestos diplomáticos da CPLP e outras instâncias politicamente correctas. Bem melhor do que entregar todo o orgulho pátrio aos pés do Cristiano Ronaldo.
7 Para acabar com o futebol e em beleza: eu já vi o sol nascer nas dunas do Teneré, no deserto do Sara; vi-o pôr-se no Grande Canal, em Veneza; vi o fundo do mar na reserva submarina feita por Cousteau, na ilhota de Pigeon, em Guadalupe; vi as manhãs da savana de África e as mil e uma noites da Índia; vi o Baryshnikov dançar e vi o Richter tocar Mozart; vi o "Leopardo" filmado pelo Visconti e "As Meninas" pintadas pelo Velásquez. E vi o Leonel Messi marcar quatro golos ao Arsenal e transformar o futebol numa extasiante mistura de tudo: o nascer do sol e a dança, o fundo do mar e a música. Que Deus proteja Leonel Messi! Miguel Sousa Tavares Texto publicado na edição do Expresso de 10 de Abril de 2010
Sem comentários:
Enviar um comentário