Por muito que seja 'patriótico' e politicamente correcto acusar a Sr.ª Merkel de egoísmo, eu não consigo enxergar o que esteja tão errado nas suas ideias. José Sócrates sobreviveu aos primeiros rounds da sua luta de vida ou morte contra os famigerados 'mercados': o peso da taxa de juro no serviço da dívida soberana vem baixando ligeiramente e cada vez escuta mais vozes internas concordantes com a sua firme resistência ao FMI. Cada semana que sobrevive nestas condições periclitantes é mais tempo que Sócrates ganha para conseguir chegar ao objectivo final: a flexibilização e reforço substancial do financiamento por parte do Fundo Europeu de Estabilização Financeira. Isso permitir-nos-ia, dentro de alguns meses, recorrer ao Fundo Europeu, em lugar do FMI, com melhores condições de crédito e a salvaguarda do orgulho nacional. É uma alternativa inteligente, mas que está dependente de um factor crucial: a capacidade de o Governo de ir mantendo, mês a mês, a execução orçamental sob controlo, dentro dos limites anunciados. Em última análise, porém, quem manda nisto e quem decide é quem paga: a Sr.ª Merkel, mais os escassos países europeus integrantes do chamado 'Clube Triple A' - os que gozam da cotação máxima dos mercados (AAA), ou seja, os que não têm problemas de défice crónico nem dívida pública acumulada a um nível preocupante ou assustador. E, para viabilizar o sonho do seu outrora amigo José Sócrates, a Sr.ª Merkel tem três condições: a uniformização da idade da reforma em todos os 27, de acordo com o que vigora na Alemanha (67 anos de idade) - uma ideia a pensar sobretudo nas pornográficas regras em vigor na Grécia e que contribuíram decisivamente para a falência do país; a uniformização tendencial da carga fiscal, em especial do IRC, para evitar situações de autêntico 'dumping fiscal' em países como a Holanda ou a Irlanda; e, por fim, a obrigatoriedade de todos inscreveram nas suas Constituições, tal como a Alemanha já faz, limites constitucionais ao défice público e à dívida soberana. Sócrates navega pela espuma da borrasca - e é tudo o que agora pode fazer. Merkel dirige-se à substância da tempestade. E, por muito que seja 'patriótico' e politicamente correcto acusar a Sr.ª Merkel de egoísmo, de antieuropeísmo ou de só pensar nas suas próximas eleições regionais de 27 de Março, eu não consigo enxergar o que esteja errado nas suas ideias. Vejamos.O princípio da uniformização fiscal parece-me tão evidente que o que se estranha é que isso, mais um ataque concertado às offshores, não seja de há muito um princípio consensual da UE. É claro que a uniformização não pode ignorar situações específicas de cada país e necessidades próprias decorrentes de diferentes patamares de desenvolvimento (não é mesma coisa descontar 40% de IRS sobre um ordenado sueco ou sobre um ordenado português; não é a mesma coisa cobrar 25% de IRC à BMW de Munique ou cobrar os mesmos 25% a uma pequena-média empresa que se queira estabelecer no interior despovoado de Portugal). Mas evitar que haja, por exemplo, países que cobram, a todas as empresas, 12, 5% ou 0% de IRS, quando os restantes países da União cobram entre 20 a 25%, seria uma forma de combater concorrência desleal e prevenir uma forma de esbulho fiscal aos outros países, que vêem empresas suas localizarem artificialmente as suas sedes onde menos impostos pagam. Quanto à uniformização da idade da reforma em todo o espaço da União, aquilo que se pode dizer é que nenhum alemão consegue compreender como é que tem de trabalhar até aos 67 anos e ao mesmo tempo contribuir com os seus impostos para acudir a países onde se trabalha até aos 62, 60 ou até 50. Em Espanha, Zapatero acaba de impor os 67 anos às centrais sindicais e aos patrões. Mas, na França, a tentativa de subir devagarinho a idade da reforma até aos 65, trouxe para a rua milhões de indignados cidadãos, e na Grécia (onde há mais de cem profissões de "desgaste rápido", conferindo o direito de reforma aos 50 anos), as mudanças impostas pelo Governo socialista têm colocado o país a ferro e fogo. De Portugal, nem vale a pena falar: basta escutar a 'rua' ou esses fóruns de debates matinais da rádio, onde eu me chego a convencer que não há mesmo saída para este país e onde o cidadão comum manifesta o seu mais profundo pensamento político: não interessam os números, nem a situação financeira do país, nem as questões demográficas, nem sequer a proveniência do dinheiro que reclamam, só interessa que 'eles' paguem o que é 'nosso'. Enfim, a inesperada ideia de fixar limites constitucionais às derrapagens orçamentais e ao endividamento do país. À primeira vista, dir-se-ia uma daquelas bizarras propostas demagógicas que a nossa querida Constituição já contém q.b. Até faz lembrar a Constituição brasileira que, no auge do Plano Real e após décadas de traumatismo nacional com taxas de inflação que chegaram a ultrapassar os 100% ao mês, estabeleceu uma norma fixando um limite para a taxa de inflação (20%, se não estou em erro). Mas imaginem que, em vez de haver uma norma constitucional que fixasse um limite concreto ao défice e ao endividamento, haveria uma que estabeleceria o princípio de que nenhuma geração poderia gastar em seu exclusivo benefício aquilo que outras seriam depois chamadas a pagar: o princípio constitucional da solidariedade geracional. E imaginem que, confrontado com a contestação popular contra o alargamento da idade da reforma, haveria um primeiro-ministro que poderia invocar uma legitimidade política e constitucional para responder: "vocês reformam-se aos 67 para que os vossos filhos não tenham de se reformar aos 80 e os vossos netos aos 100". Agora imaginem também ao que isto obrigaria o Estado: a desmantelar e sepultar larga fatia do universo de organismos públicos, fundações públicas e falsas fundações privadas, empresas públicas e autárquicas inúteis ou sumptuárias, comissões de tudo e mais alguma coisa, museus do paleolítico e capitais europeias da cultura, milhares de jobs para boys e girls. Imaginem que o dr. Jardim, do Funchal, era finalmente posto na ordem e que os serviços públicos de que o Estado não se pode demitir eram geridos de forma responsável e responsabilizada, cível e criminalmente. Que os abutres da indústria farmacêutica eram combatidos como inimigo público, que haveria penas exemplares para os cidadãos que roubam ou abusam do Estado, com falsas baixas médicas por razões 'psicológicas', que beneficiam do subsídio de desemprego e fazem batota para não ter de aceitar outros empregos, que aviam sem cessar receitas médicas comparticipadas a 100% e que não vão usar, ou que exigem uma ressonância magnética porque acordaram com uma dor nas costas.
Peço desculpa: a srª Merkel tem razão.
P.S. - Vi uma manifestação de pais, alunos e professores de uma escola pública, onde, dizem eles, chove em alguns locais e faz frio porque não há aquecimento na escola. Eu entrei para o ensino numa escola pública de uma aldeia da Serra do Marão. Todos chegávamos a pé, por montes e vales, sob um frio indescritível, e alguns chegavam descalços. Não havia, obviamente, qualquer aquecedor na única sala de aulas, em granito, onde se amontoavam todos os alunos, da 1ª à 4ª classe, com uma única professora - que não faltou um dia do ano. Não havia cadernos nem canetas, havia giz e lousa. O 'recreio' era um pequeno descampado de terra, onde jogávamos futebol com uma bola de trapos. Mais tarde, frequentei um liceu público, em Lisboa, onde também não havia aquecimento algum, o único recinto desportivo era um desmantelado campo de basquete em cimento, onde tentávamos jogar futebol de sete, e no barracão que fazia de ginásio, tínhamos de começar por limpar com esfregonas a água da chuva que caía do tecto. Que eu saiba, não morreu ninguém e, quem quis, estudou. Nos últimos anos, os governos têm investido fortunas nas escolas públicas e nas suas condições de funcionamento. Todas as escolas que visito hoje são um verdadeiro luxo, comparadas com as que conheci nos meus tempos de estudante - e isto para não falar já nos computadores, nas três refeições por dia, etc. Os pais, os alunos e os professores que hoje estão no sistema de ensino deveriam agradecer o esforço incrível feito pelos contribuintes para que eles disponham das condições que têm. Há uma escola onde falta o aquecimento e chove em alguns lugares? Ó meninos, agasalhem-se e levem guarda-chuvas! Miguel Sousa Tavares (www.expresso.pt)
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