Reencaminho este email, pois acredito na proveniência!
"O texto que publico na íntegra é do escritor e ensaísta Eugénio Lisboa. Os
sublinhados são da minha responsabilidade.
O autor foi presidente da Comissão Nacional da UNESCO / conselheiro Cultural
da Embaixada de Portugal em Londres entre 1978-1995 / professor catedrático
especial de Estudos Portugueses na Universidade de Nottingham / professor
catedrático visitante da Universidade de Aveiro / e coordenador do ensino da
língua portuguesa na Suécia. É Doutor Honoris Causa pelas universidades de
Nottingham e Aveiro. A Câmara de Cascais outorgou-lhe a medalha de Mérito
Cultural.
Em Moçambique foi sucessivamente administrador e director das petrolíferas
SONAPMOC, SONAREP e TOTAL.
CARTA AO PRIMEIRO-MINISTRO DE PORTUGAL
Exmo. Senhor Primeiro Ministro
Hesitei muito em dirigir-lhe estas palavras, que mais não dão do que uma
pálida ideia da onda de indignação que varre o país, de norte a sul, e de
leste a oeste.
Além do mais, não é meu costume nem vocação escrever coisas de cariz
político, mais me inclinando para o pelouro cultural. Mas há momentos em
que, mesmo que não vamos nós ao encontro da política, vem ela,
irresistivelmente, ao nosso encontro. E, então, não há que fugir-lhe.
Para ser inteiramente franco, escrevo-lhe, não tanto por acreditar que vá
ter em V. Exa. qualquer efeito — todo o vosso comportamento, neste primeiro
ano de governo, traindo, inescrupulosamente, todas as promessas feitas em
campanha eleitoral, não convida à esperança numa reviravolta! — mas, antes,
para ficar de bem com a minha consciência.
Tenho 82 anos e pouco me restará de vida, o que significa que, a mim, já
pouco mal poderá infligir V. Exa. e o algum que me inflija será sempre de
curta duração.
É aquilo a que costumo chamar "as vantagens do túmulo" ou, se preferir, a
coragem que dá a proximidade do túmulo.
Tanto o que me dê como o que me tire será sempre de curta duração. Não será,
pois, de mim que falo, mesmo quando use, na frase, o "odioso eu", a que
aludia Pascal.
Mas tenho, como disse, 82 anos e, portanto, uma alongada e bem vivida
experiência da velhice — a minha e da dos meus amigos e familiares. A
velhice é um pouco — ou é muito – a experiência de uma contínua e
ininterrupta perda de poderes.
"Desistir é a derradeira tragédia", disse um escritor pouco conhecido.
Desistir é aquilo que vão fazendo, sem cessar, os que envelhecem.
Desistir, palavra horrível. Estamos no verão, no momento em que escrevo
isto, e acorrem-me as palavras tremendas de um grande poeta inglês do século
XX (Eliot):
"Um velho, num mês de secura"... A velhice, encarquilhando-se, no meio da
desolação e da secura. É para isto que servem os poetas: para encontrarem,
em poucas palavras, a medalha eficaz e definitiva para uma situação, uma
visão, uma emoção ou uma ideia.
A velhice, Senhor Primeiro Ministro, é, com as dores que arrasta — as
físicas, as emotivas e as morais — um período bem difícil de atravessar. Já
alguém a definiu como o departamento dos doentes externos do Purgatório.
E uma grande contista da Nova Zelândia, que dava pelo nome de Katherine
Mansfield, com a afinada sensibilidade e sabedoria da vida, de que V. Exa. e
o seu governo parecem ter défice, observou, num dos contos singulares do seu
belíssimo livro intitulado The Garden Party:
"O velho Sr. Neave achava-se demasiado velho para a primavera."
Ser velho é também isto: acharmos que a primavera já não é para nós, que não
temos direito a ela, que estamos a mais, dentro dela... Já foi nossa, já, de
certo modo, nos definiu.
Hoje, não. Hoje, sentimos que já não interessamos, que, até, incomodamos.
Todo o discurso político de V. Exas., os do governo, todas as vossas
decisões apontam na mesma direcção: mandar-nos para o cimo da montanha,
embrulhados em metade de uma velha manta, à espera de que o urso lendário
(ou o frio) venha tomar conta de nós.
Cortam-nos tudo, o conforto, o direito de nos sentirmos, não digo amados
(seria muito), mas, de algum modo, utilizáveis: sempre temos umas pitadas de
sabedoria caseira a propiciar aos mais estouvados e impulsivos da nova casta
que nos assola.
Mas não. Pessoas, como eu, estiveram, até depois dos 65 anos, sem gastar um
tostão ao Estado, com a sua saúde ou com a falta dela.
Sempre, no entanto, descontando uma fatia pesada do seu salário, para uma
ADSE, que talvez nos fosse útil, num período de necessidade, que se foi
desejando longínquo.
Chegado, já sobre o tarde, o momento de alguma necessidade, tudo nos é
retirado, sem uma atenção, pequena que fosse, ao contrato anteriormente
firmado.
É quando mais necessitamos, para lutar contra a doença, contra a dor e
contra o isolamento gradativamente crescente, que nos constituímos em alvo
favorito do tiroteio fiscal: subsídios (que não passavam de uma forma de
disfarçar a incompetência salarial), comparticipações nos custos da saúde,
actualizações salariais — tudo pela borda fora.
Incluindo, também, esse papel embaraçoso que é a Constituição,
particularmente odiada por estes novos fundibulários.
O que é preciso é salvar os ricos, os bancos, que andaram a brincar à Dona
Branca com o nosso dinheiro e as empresas de tubarões, que enriquecem sem
arriscar um cabelo, em simbiose sinistra com um Estado que dá o que não é
dele e paga o que diz não ter, para que eles enriqueçam mais, passando a
fruir o que também não é deles, porque até é nosso.
Já alguém, aludindo à mesma falta de sensibilidade de que V. Exa. dá provas,
em relação à velhice e aos seus poderes decrescentes e mal apoiados,
sugeriu, com humor ferino, que se atirassem os velhos e os reformados para
asilos desguarnecidos, situados, de preferência, em andares altos de prédios
muito altos:
de um 14º andar, explicava, a desolação que se comtempla até passa por
paisagem.
V. Exa. e os do seu governo exibem uma sensibilidade muito, mas mesmo muito,
neste gosto.
V. Exas. transformam a velhice num crime punível pela medida grande.
As políticas radicais de V. Exa, e do seu robôtico Ministro das Finanças —
sim, porque a Troika informou que as políticas são vossas e não deles... —
têm levado a isto: a uma total anestesia das antenas sociais ou simplesmente
humanas, que caracterizam aqueles grandes políticos e estadistas que a
História não confina a míseras notas de pé de página.
Falei da velhice porque é o pelouro que, de momento, tenho mais à mão.
Mas o sofrimento devastador, que o fundamentalismo ideológico de V.
Exa. está desencadear pelo país fora, afecta muito mais do que a fatia dos
velhos e reformados.
Jovens sem emprego e sem futuro à vista, homens e mulheres de todas as
idades e de todos os caminhos da vida — tudo é queimado no altar ideológico
onde arde a chama de um dogma cego à fria realidade dos factos e dos
resultados.
Dizia Joan Ruddock não acreditar que radicalismo e bom senso fossem
incompatíveis. V. Exa. e o seu governo provam que o são: não há forma de
conviverem pacificamente.
Nisto, estou muito de acordo com a sensatez do antigo ministro conservador
inglês, Francis Pym, que teve a ousadia de avisar a Primeira Ministra
Margaret Thatcher (uma expoente do extremismo neoliberal), nestes termos:
"Extremismo e conservantismo são termos contraditórios".
Pym pagou, é claro, a factura: se a memória me não engana, foi o primeiro
membro do primeiro governo de Thatcher a ser despedido, sem apelo nem
agravo.
A "conservadora" Margaret Thatcher — como o "conservador" Passos Coelho —
quis misturar água com azeite, isto é, conservantismo e extremismo. Claro
que não dá.
Alguém observava que os americanos ficavam muito admirados quando se sabiam
odiados.
É possível que, no governo e no partido a que V. Exa. preside, a maior parte
dos seus constituintes não se aperceba bem (ou, apercebendo-se, não
compreenda), de que lavra, no país, um grande incêndio de ressentimento e
ódio.
Darei a V. Exa. — e com isto termino — uma pista para um bom entendimento do
que se está a passar.
Atribuíram-se ao Papa Gregório VII estas palavras: "Eu amei a justiça e
odiei a iniquidade: por isso, morro no exílio."
Uma grande parte da população portuguesa, hoje, sente-se exilada no seu
próprio país, pelo delito de pedir mais justiça e mais equidade.
Tanto uma como outra se fazem, cada dia, mais invisíveis.
Há nisto, é claro, um perigo.
De V. Exa., atentamente,
Eugénio Lisboa"
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