Saiu hoje de cena, aos 97 anos, Santiago Carrillo. Tal como no poema de Lorca, a sua morte deu-se "eran las cinco en sombra de la tarde!". Carrillo foi, com Dolores Ibárruri, um dos mais marcantes dirigentes comunistas espanhóis. Seria também um dos obreiros da transição e, nessa qualidade, alguém a quem a Espanha democrática deve bastante. Diabolizado pela velha direita espanhola, pela suas alegadas responsabilidades na chamada "matanza de Paracuellos", durante a Guerra civil, Carrillo acabou por transformar-se numa das estrelas do "eurocomunismo", essa deriva de moderação ideológica e de afastamento face a Moscovo, que se espalhou por alguns partidos comunistas europeus, a que o PCP ficou orgulhosa e naturalmente imune. Aliás, as relações entre Santiago Carrillo e Álvaro Cunhal nunca foram as melhores e vale a pena ler, nas memórias do primeiro, entre outros episódios curiosos, o relato de um encontro noturno entre ambos, na serra de Sintra, ao tempo das ditaduras ibéricas.
As ligações de Carrillo com Portugal não se ficaram por essa relação. Depois da Guerra civil, nos anos 40, Carrillo viveu por uns meses no Estoril, sob disfarce de um industrial uruguaio de conservas. E as suas relações sociais da época levaram-no a visitar fábricas na zona de Setúbal, com a ajuda do então ministro da Marinha portuguesa, com quem teve um encontro e que era, nem mais nem menos, o futuro presidente Américo Tomaz. Sempre achei magnífica a ironia deste episódio.
Na frustrada tentativa de golpe militar de extrema direita, em 23 de fevereiro de 1981, a vida de Carrillo esteve por um fio. Quando Tejero entrou nas Cortes e intimou "todo el mundo al suelo!", nem "todo el mundo" se curvou à ordem: o chefe do governo, Adolfo Suárez, e o seu ministro da Defesa, Gutierrez Mellado, recusaram obedecer, como as conhecidas imagens mostram. Mas essas imagens não revelam que, ao lado das centenas de cabeças que se esconderam por detrás das bancadas, houve um outro homem que não se baixou: Santiago Carrillo. Um gesto, talvez para a História.
De Carrillo ficou-me também uma cena que ele relata do primeiro encontro que teve com o rei Juan Carlos, depois da legalização do PCE. Ao aproximar-se do soberano, ouviu este saudá-lo como "Don Santiago". Nesse instante, Carrillo entendeu que acabava de aceder à família política da nova Espanha democrática.
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