Lembro-me muito bem da primeira aula a que assisti, tendo Adriano Moreira como professor. Foi em outubro de 1968, no Instituto Superior de Ciências Sociais e Política Ultramarina (ISCSPU), de que Adriano Moreira era diretor. Caramba, foi já há 44 anos! E Adriano Moreira fez ontem 90 anos.
Adriano Moreira era, à época, um nome de que muito se falava - mas sobre o qual, por razões que a conjuntura tornava óbvias, muito pouco se escrevia. Dias antes, Marcello Caetano fora nomeado pelo presidente Tomaz para o cargo de "presidente do conselho", em substituição de Salazar. Nos conciliábulos do regime e não só, o nome de Adriano Moreira havia sido citado como uma possível opção, mas os equilíbrios que se refletiram na decisão do presidente da República não o favoreciam. À época, referiram-se muito as resistências que o seu nome suscitaria em certos círculos militares, embora outras opiniões fossem no sentido de que outras tendências castrenses desejavam vê-lo em S. Bento. A verdade é que, no saldo final, Adriano Moreira ficou arredado da sucessão de Salazar, em benefício de Marcello Caetano. E, este, logo que pôde, pela mão do ministro José Hermano Saraiva, cuidou em afastá-lo da direção do ISCSPU, nos primeiros meses de 1969.
Para os estudantes, esta evidente conflitualidade com Caetano dava a Adriano Moreira uma auréola de alguma "oposição", que se vinha a somar à imagem vaga, que alguns "connaisseurs" espalhavam, dos seus tempos de jovem advogado, em que chegara a estar detido pela polícia política, pela sua ação de defesa dos interesses da família do general Godinho, cuja morte misteriosa na prisão, na decorrência de uma tentativa de golpe militar, fazia parte das mitilogias recorrentes do "reviralhismo". Não parecia, assim, estranho que o movimento estudantil dentro do ISCSPU, que se vira provocado pela "não homologação" ministerial da lista vitoriosa nas eleições desse ano para a associação académica, acabasse por se aliar taticamente a Adriano Moreira. Como membro dessa direção associativa, tenho uma memória muito viva da gestão dessa "aliança", que teve em Narana Coissoró uma figura proeminente. Recordo bem a dificuldade que alguns de nós tínhamos em ver a nossa ação ligada à de um antigo ministro de Salazar, pelo "risco" de estarmos a ser instrumentalizados por uma das facções dentro do regime.
Adriano Moreira era um professor brilhante, com uma exposição atraente, que nos gerava vontade de irmos mais longe naquilo que nos transmitia. Começava as aulas em voz muito baixa, para desfazer as conversas residuais na sala. Ao falar, circulava o olhar, fixando-se, por instantes, em cada um de nós, o que dava a impressão de se nos dirigir individualmente. Como a "política" era, como dizem os franceses, o seu "fond de commerce", nós distinguiamo-la sempre por detrás de todos o seus comentários, onde o "esquerdismo" de alguns procurava sempre descortinar o que se assemelhasse a heterodoxia. Adriano - era assim que a ele nos referíamos, entre nós - tinha a rara habilidade de suscitar uma controlada polémica política entre os alunos. A minha colega Maria João Bustorff lembrava, há tempos, o modo como Adriano estimulava debates entre mim e o António Marques Bessa, cada um de nós em lados bem antagónicos do espetro político, em confrontos nas aulas que sempre tinham temas do "programa" como motivo. Belos tempos!
Pouco a pouco, nessas aulas, íamos sendo introduzidos na matriz do pensamento de um homem que, um dia, Salazar escolhera inesperadamente para a pasta do Ultramar, na sequência da rebelião angolana de 1961, mas cujo espírito reformista o regime não acomodara e cuja frontalidade acabaria por conflituar com o poder administrativo do governador de Angola, general Sá Viana Rebelo, o que levaria o chefe do Governo a tomar a decisão de ver-se livre, simultaneamente, dos dois. Adriano Moreira não era um proselitista deliberado, não cuidava em endoutrinar-nos, não veiculava uma ideologia clara. Era um questionador do quotidiano, alguém que problematizava e nos obrigava a refletir. Sentiamo-lo, claramente, do "outro lado", mas, estranhamente, não provocava uma antagonização aberta. E isso, às vezes, enfurecia-nos: nós fazíamos parte de uma geração maniqueísta e Adriano Moreira "furava" essa fácil dualidade.
Com o 25 de abril, o radicalismo saneador dentro do ISCSP (que, entretanto, perdeu o "U", como o país também perdeu o "ultramar"...) fez com que Adriano Moreira saísse para o Brasil. Uma decisão estúpida e sem sentido, para alguém que, não obstante o seu percurso político anterior, tinha tido sempre um comportamento exemplar face aos alunos e face à "nossa escola" (era assim que Adriano Moreira se referia sempre ao Instituto), que nunca perseguira ninguém e a quem o ensino universitário português - e as Ciências sociais, muito em particular - muito deviam. Fiquei satisfeito quando esse seu afastamento chegou ao fim e tive o prazer de então lho poder dizer, cara a cara, uma noite de 1979, na Gulbenkian. E gostei muito da sua resposta: "fico contente de ouvir isso, particularmente vindo de si".
Adriano Moreira, depois do seu regresso de Portugal, envolveu-se na política democrática, sempre de uma forma elegante, sem chicanas nem grandes polémicas. Naturalmente, a área conservadora foi o seu meio natural de expressão cívica. Porém, fê-lo sem "travestismos", sem saltitar em conúbios oportunistas, umas vezes com a esquerda, outras vezes com direita, como outros cataventos da história portuguesa contemporânea. Manteve, em paralelo, uma atividade académica intensa e, pela imprensa, tem espalhado um pensamento em matéria de relações internacionais com uma profundidade muita rara entre nós.
Há pouco tempo, Adriano Moreira publicou um livro com as suas memórias. Nesse seu reencontro com o passado, e embora se possam entender as razões por que o terá feito, o texto de Adriano Moreira ficou, na minha perspetiva, bastante aquém da síntese de vida que seria de esperar de uma figura com a sua estatura. Senti por ali inesperados compromissos, de uma natureza idêntica àqueles que, no passado, o levou, algumas vezes, ao desnecessário facilitismo de rodear-se de gente que não estava ao seu nível, nomeadamente no mundo académico.
Nos últimos meses, tenho-me cruzado com Adriano Moreira nas reuniões de uma comissão a que ambos pertencemos, nomeada pelo governo, que tem como tarefa preparar o novo Conceito estratégico de Defesa nacional. Nesses encontros, Adriano Moreira tem produzido comentários e lançado ideias que estão ao nível do seu melhor fulgor intelectual, a todos nos ajudando a pensar melhor o país. E isso aos 90 anos, ontem completados. Os meus parabéns, professor.
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