quarta-feira, 27 de novembro de 2013

Camaradas*

Francisco Seixas da Costa

 

"Escreve sobre Angola. É o que está a dar!". "Não o metas por aí! Depois do que se passou no sábado? Só vai estragar as coisas! Fala sobre as eleições em Moçambique. Uma nota de acalmia vai cair bem". "Não, isso pode ser visto como ingerência. O acordo sobre o nuclear no Irão seria uma boa malha". "Nem penses! É terreno movediço. Não viste a reacção israelita?". "Mas, afinal, se ele anda pelo Centro Norte-Sul, porque não aborda o estado em que estão as "primaveras árabes?" "É insensato! Seria delicado o homem abordar temas desses. Então ele não disse que vai à Argélia, para a semana?"

Interrompi o simpático ping-pong de dicas, sugestões para o meu primeiro artigo no "Económico", dizendo àqueles dois amigos: "Vou falar da Europa". A decepção coreografou-se nas suas caras. Há anos que me andam a ler e a ouvir sobre as sucessivas Europas. No topo das suas estantes, jazem volumes nos quais, sobre o tema, encadernei o ego e contribuí para os saldos editoriais. "O artigo vai ser sobre as divergências dentro do BCE e da Comissão Europeia quanto ao processo de ajustamento em Portugal". Ganhei a noite! Ambos olharam para mim com um ar surpreendido. O que é que eu sabia que eles desconheciam? Um era um reputado economista, eurocrítico, sempre de "FT" à ilharga. O outro, jurista com sólidos contactos, "bebia do fino" em nichos do poder de turno. Nunca ninguém lhes falara da existência de opiniões diferentes, dentro das instituições europeias da "troika". No FMI, sim! Esse órgão de Bretton Woods já gerara textos contraditórios sobre Portugal, numa heteronimia bizarra, que deu para manchetes e confusões.

Mas, afinal, que sabia eu sobre as conflitualidades no seio da dupla europeia? Pacientemente, expliquei uma coisa bem simples. Desde logo, no BCE. Quem é, por ali, o único vice-presidente, a figura mais proeminente, e presume-se que preeminente, depois de Mário Draghi? É Vítor Constâncio, não é? Vocês conhecem um socialista português, por mais moderado que seja, que esteja de acordo com o rigor do ajustamento que o BCE impõe no seio da "troika"? Nenhum, claro! Imaginem então o que devem ser as "peixeiradas" no "board" do BCE, com Constâncio a partir a loiça financeira da casa. O que, no futuro, não revelarão aquelas actas! E na Comissão? Já pensaram aquilo pelo que estarão a passar os vários comissários socialistas e sociais-democratas (lá fora, isso é outra coisa, como se sabe), camaradas dos socialistas lusos, os esforços que terão feito para flexibilizarem juros e maturidades, para aligeirar a carga infernal de austeridade que cai sobre os portugueses? É que não haverá só falcões liberais nos comissários que cada país escolheu (fora o país que não pôde escolher) para o representar.

Acabámos a conversa pensando nesses heróis solidários. Gratos mas curiosos.  

 

Artigo publicado no "Diário Económico" (26.11.13)


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