Faz hoje 30 anos que a recém-restaurada democracia espanhola passou pelo seu maior teste. Um setor das Forças Armadas, esperando poder contar com a complacência conjuntural de diversas áreas partidárias e, essencialmente, com o beneplácito real, pretendeu instituir um governo com chefia militar, que responderia ao que entendia ser a incapacidade do executivo (aliás, demissionário) de Adolfo Suarez. As coisas, felizmente, não correram bem para os golpistas e a Espanha pôde prosseguir na construção da sua magnífica democracia.
Nesse tempo, eu vivia na Noruega. Por esses dias, em casa do meu colega espanhol em Oslo estava, de visita, uma sobrinha do promotor militar da revolta, o general Milans del Bosch. Recordo a noite de 23 de fevereiro, em que as incessantes repetições televisivas do "todo el mundo al suelo!", do "carabinero" Tejero eram interrompidas por chamadas telefónicas angustiadas de e para Madrid, na tentativa de saber mais pormenores sobre o evoluir da crise - com os presentes a disfarçarem, delicada e educadamente, o radical contraste das suas posições. E comigo a fazer brindes íntimos, a comemorar a derrota dos golpistas.
Hoje sabemos bastante mais sobre a "tejerada", sobre o papel central do general Armada em todo o golpe, sobre o tempo e o modo do rei nessas horas e, também, sobre a atitude - não tão clara quanto seria de esperar - de alguns partidos políticos, que viriam a revelar-se centrais na nova democracia espanhola. Para a história do momento, ficou o gesto valente de Adolfo Suárez, de Gutiérrez Mellado e de Santiago Carrillo, as três únicas pessoas nas bancadas das Cortes espanholas, entre algumas centenas, que revelaram coragem física e dignidade cívica, ao recusarem esconder-se sob as mesas, como lhes era ordenado pelos invasores do parlamento.
Nestas três décadas, li muita coisa sobre a transição espanhola e, em especial, sobre esse dia decisivo, as mais das vezes através de relatos de personalidades políticas da época. Há uns meses, um amigo espanhol, num congresso em Badajoz, recomendou-me a obra "Anatomia de un instante", de Javier Cercas. Não tendo conseguido então a versão original espanhola, comprei, há meses, uma tradução francesa e não dei por mal empregue o tempo da sua leitura. O autor não é um historiador e, ao que parece, tinha inicialmente a intenção de escrever um romance baseado no evento. Talvez por essa razão, o seu texto tem um ritmo muito diferente do tradicional, ao utilizar um método pouco comum de abordagem do fenómeno "23 de fevereiro", enveredando por uma segmentação do papel de cada uma das três personagens políticas acima referidas, tratando-as na sua contextualização própria, recortando-as psicologicamente, no seu brilho e nas suas sombras, sem, porém, perder o cenário global de fundo. E, não sendo, na base, um historiador, Cercas não esquece nunca os factos.
Aprendi imenso com este livro, o que significou dessacralizar algumas figuras, assumir as suas fraquezas mas, ao mesmo tempo, descortinar outros atores que só são secundários para a má historiografia. Não é um livro fácil, em especial para quem não seja iniciado na história contemporânea espanhola e, em especial, na trama do 23-F, mas, para mim, foi uma obra fascinante.
Aprendi imenso com este livro, o que significou dessacralizar algumas figuras, assumir as suas fraquezas mas, ao mesmo tempo, descortinar outros atores que só são secundários para a má historiografia. Não é um livro fácil, em especial para quem não seja iniciado na história contemporânea espanhola e, em especial, na trama do 23-F, mas, para mim, foi uma obra fascinante.
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