sábado, 31 de outubro de 2009

Moedas


A apresentação da política portuguesa de ajuda ao desenvolvimento estava a correr bastante bem, naquela reunião com homólogos, no final dos anos 80, numa capital europeia. O grupo técnico que eu integrava fazia, sector a sector, uma descrição, devidamente quantificada, da nossa política de cooperação. O "número" já tinha sido ensaiado em duas ocasiões, em língua inglesa, e estávamos agora a experimentá-lo, pela primeira vez, em francês.
Uma boa parte da reunião já tinha decorrido quando nos começamos a dar conta de alguma agitação do lado dos nossos interlocutores. Todos trocavam impressões entre si e, aparentemente, alguma coisa naquilo que estava a ser dito pelo nosso colega os impressionara. Mas, ouvindo-o, nada nos soava a estranho. Até um certo momento.
Com efeito, sou eu próprio que detecto que, num determinado ponto da sua apresentação, o meu colega se referia a um montante em "ecus" - na altura a moeda escritural que estava em voga na União Europeia e que equivalia, se bem me lembro, a cerca de 150 escudos portugueses, a nossa moeda da época. Confesso que estranhei: não era vulgar apresentar valores em "ecu", até porque a moeda quase "oficial" da ajuda ao desenvolvimento era o dólar americano.
Foi então que, num instante, realizei o que se estava a passar. O nosso colega estava a referir-se aos nossos escudos e, em lugar de referir o nome da nossa moeda em português, decidira "traduzi-la". Ora em francês, "escudo" é, de facto, "écu", mas apenas com o significado daquela arma de defesa antiga, redonda, para evitar golpes de espada.
A perturbação e a incredulidade da delegação interlocutora eram plenamente justificadas. Nas suas contas, a nossa ajuda pública ao desenvolvimento estava a ser multiplicada por ... 150 vezes! Somos um país generoso na nossa ajuda externa, mas há limites!
Saltei da cadeira e, com a delicadeza possível, interrompi a reunião e expliquei ao nosso colega o lapso que estava a cometer. Qual quê?! Desagradado, ficou furioso comigo e teimou que estava a traduzir bem o nome da nossa moeda. Só com a ajuda de um terceiro elemento da nossa delegação foi possível convencê-lo.
Hoje, as coisas seriam diferentes: as novas gerações de diplomatas raramente optam por falar francês e, com o euro, acaba por ser tudo muito mais fácil. Embora, talvez, com menos graça.

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