Toda a direcção associativa universitária, de que eu fazia parte, eleita pelos estudantes com uma expressiva maioria de votos, fora recusada pelo Ministério da Educação - a eleição fora "não homologada", como então se dizia.
Um parêntesis para referir que era assim que as coisas se passavam antes do 25 de Abril, pelo que convém recordá-lo às novas gerações: se os dirigentes eleitos pelo estudantes não agradavam ao poder político, não eram autorizados a tomar posse. Tanto podia ser recusada a lista toda, como podiam ser "seleccionados" apenas alguns elementos como não aceitáveis - como me voltou a suceder mais tarde, a mim e ao Fausto (esse mesmo, o cantautor famoso), em 1972.
Este tipo de decisões era sempre seguido pela nomeação de uma "comissão administrativa" escolhida pelo poder, constituída por alguns dos seus complacentes cúmplices, os quais, por regra, vinham posteriormente justificar perante nós a sua farisaica atitude, com o argumento de terem aceite apenas para evitar o encerramento da Associação Académica, para dar continuidade à edição das "sebentas", etc.
Esse ano de 1968 foi, em Portugal, muito complicado.
O Maio parisiense ainda estava próximo e nós havíamos editado uma revista bem irreverente, chamada "Ibis", onde as ideias desse movimento estavam muito reflectidas e eram adaptadas à realidade portuguesa. Era o prenúncio de uma importante agitação académica que começava a grassar e que viria a incendiar as nossas universidades no ano seguinte.
Em Agosto de 1968, Salazar caíra da cadeira, em Setembro caíra do poder, Marcelo Caetano ensaiva a farsa da "primavera política", mantendo o mesmo ministro da Educação escolhido por Salazar: José Hermano Saraiva, a figura que todos conhecem, hoje com um perfil inofensivo, que a liberdade que então combatia transformou em divulgador televisivo de uma visão pessoal dos factos históricos nacionais.
À época, o Ministério da Educação, chefiado por José Hermano Saraiva, era no Campo de Santana, em Lisboa. A direcção académica de que eu fazia parte, eleita mas "não homologada", havia pedido uma audiência ao ministro, para protestar contra essa "não homologação". Para nossa grande surpresa, este acedeu a receber-nos. A coreografia da "primavera política" tinha destes gestos.
Num primeiro contacto com o gabinete do ministro, surge um inesperado problema: um de nós, o Raul Caixinhas, não tinha gravata. E o senhor ministro, foi-nos dito, não recebia pessoas sem gravata. A verdade é que, à época, a gravata era um adereço obrigatório para se assistir às aulas. Por maioria de razão, compreendia-se que ela fosse indispensável para a visita a um ministro.
Que fazer? O Caixinhas era um interlocutor importante para o diálogo que se iria seguir, não podia faltar ao encontro e ficar à porta. Tinha de arranjar uma gravata! Saiu disparado e, um quarto de hora depois, reapareceu de gravata posta. Preta, claro. E lá entrou a nossa direcção associativa para a audiência. Esta acabou por converter-se numa patética conversa entre um ministro de uma ditadura e um grupo de estudantes que a ela abertamente se opunham, pelo que a reunião, como seria de esperar, foi totalmente inconclusiva. Se bem que tivesse tido alguns pontos pícaros, como os insistentes olhares lúbricos do ministro para as mini-saias de algumas capitosas colegas que nos acompanhavam, mas isso não vem para esta história.
À saída, alguns de nós não deixaram de ironizar com a tradicional rebeldia do Caixinhas: "então lá tiveste que pôr gravata, pá!". O Caixinhas desarmou-nos: "É verdade, fui de gravata. Mas, para compensar, fui sem meias!". E mostrou-nos as peúgas que entretanto metera no bolso, antes de entrar para a audiência com o ministro. Julgo que os funcionários do Ministério da Educação nunca perceberam a razão por que descemos as escadas às gargalhadas. Pensavam, talvez, que nos estávamos a rir do ministro. E, de certa maneira, estávamos.
Um parêntesis para referir que era assim que as coisas se passavam antes do 25 de Abril, pelo que convém recordá-lo às novas gerações: se os dirigentes eleitos pelo estudantes não agradavam ao poder político, não eram autorizados a tomar posse. Tanto podia ser recusada a lista toda, como podiam ser "seleccionados" apenas alguns elementos como não aceitáveis - como me voltou a suceder mais tarde, a mim e ao Fausto (esse mesmo, o cantautor famoso), em 1972.
Este tipo de decisões era sempre seguido pela nomeação de uma "comissão administrativa" escolhida pelo poder, constituída por alguns dos seus complacentes cúmplices, os quais, por regra, vinham posteriormente justificar perante nós a sua farisaica atitude, com o argumento de terem aceite apenas para evitar o encerramento da Associação Académica, para dar continuidade à edição das "sebentas", etc.
Esse ano de 1968 foi, em Portugal, muito complicado.
O Maio parisiense ainda estava próximo e nós havíamos editado uma revista bem irreverente, chamada "Ibis", onde as ideias desse movimento estavam muito reflectidas e eram adaptadas à realidade portuguesa. Era o prenúncio de uma importante agitação académica que começava a grassar e que viria a incendiar as nossas universidades no ano seguinte.
Em Agosto de 1968, Salazar caíra da cadeira, em Setembro caíra do poder, Marcelo Caetano ensaiva a farsa da "primavera política", mantendo o mesmo ministro da Educação escolhido por Salazar: José Hermano Saraiva, a figura que todos conhecem, hoje com um perfil inofensivo, que a liberdade que então combatia transformou em divulgador televisivo de uma visão pessoal dos factos históricos nacionais.
À época, o Ministério da Educação, chefiado por José Hermano Saraiva, era no Campo de Santana, em Lisboa. A direcção académica de que eu fazia parte, eleita mas "não homologada", havia pedido uma audiência ao ministro, para protestar contra essa "não homologação". Para nossa grande surpresa, este acedeu a receber-nos. A coreografia da "primavera política" tinha destes gestos.
Num primeiro contacto com o gabinete do ministro, surge um inesperado problema: um de nós, o Raul Caixinhas, não tinha gravata. E o senhor ministro, foi-nos dito, não recebia pessoas sem gravata. A verdade é que, à época, a gravata era um adereço obrigatório para se assistir às aulas. Por maioria de razão, compreendia-se que ela fosse indispensável para a visita a um ministro.
Que fazer? O Caixinhas era um interlocutor importante para o diálogo que se iria seguir, não podia faltar ao encontro e ficar à porta. Tinha de arranjar uma gravata! Saiu disparado e, um quarto de hora depois, reapareceu de gravata posta. Preta, claro. E lá entrou a nossa direcção associativa para a audiência. Esta acabou por converter-se numa patética conversa entre um ministro de uma ditadura e um grupo de estudantes que a ela abertamente se opunham, pelo que a reunião, como seria de esperar, foi totalmente inconclusiva. Se bem que tivesse tido alguns pontos pícaros, como os insistentes olhares lúbricos do ministro para as mini-saias de algumas capitosas colegas que nos acompanhavam, mas isso não vem para esta história.
À saída, alguns de nós não deixaram de ironizar com a tradicional rebeldia do Caixinhas: "então lá tiveste que pôr gravata, pá!". O Caixinhas desarmou-nos: "É verdade, fui de gravata. Mas, para compensar, fui sem meias!". E mostrou-nos as peúgas que entretanto metera no bolso, antes de entrar para a audiência com o ministro. Julgo que os funcionários do Ministério da Educação nunca perceberam a razão por que descemos as escadas às gargalhadas. Pensavam, talvez, que nos estávamos a rir do ministro. E, de certa maneira, estávamos.
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