quinta-feira, 10 de maio de 2012

A mesa

O secretário de embaixada, naquele posto diplomático isolado, num qualquer lugar do mundo, numa cidade cujo nome me escapa, conhecia ainda mal o seu novo embaixador, que há dias havia chegado.

Já dera para perceber que se tratava de uma personalidade algo solitária, um pouco sentenciosa, com ideias muito firmes a propósito de tudo. E parecia ser, pelo menos a avaliar por certas atitudes, uma pessoa algo desconfiada. Mas era simpático, e isso é sempre o mais importante, numa embaixada pequena, onde é decisivo preservar uma boa relação entre o chefe de missão e o seu direto e único colaborador diplomático.

O secretário ficou agradavelmente surpreendido quando, numa manhã, o novo embaixador o chamou e inquiriu: "Você, que já está cá há um tempo, diga-me lá: qual é o melhor restaurante da cidade?". O jovem diplomata hesitou um pouco. Os seus "cabedais" não davam para frequentar muito os melhores restaurantes, naquela que era considerada, ao tempo, uma das cidades mais caras do mundo. Mas, naturalmente, ouvira falar nos mais badalados lugares dessa capital. E, sob reserva de não ainda lá ido, indicou um nome bastante conhecido.

O embaixador, além de simpático, era uma homem generoso, como o gesto imediato demonstrou e o futuro viria a provar. "Se você não tiver nada combinado, convido-o para almoçar nesse restaurante", disse o embaixador. O secretário estava disponível, achou graça à ideia e, de imediato, acedeu ao pedido do seu novo chefe para providenciar a marcação de uma mesa. Na conversa telefónica com o restaurante, deixou cair que a reserva era para o embaixador português, por forma a procurar assegurar um acolhimento à altura.

Chegados ao restaurante tiveram, de facto, um tratamento singularizado. O "maître" veio esperá-los e, desde logo, identificou o embaixador, a quem designou pelo seu título. O secretário julgava que o seu chefe havia ficado satisfeito com o facto, mas só até ao momento em que se viu, em voz baixa e desagradada, criticado pela indiscrição cometida: "Quem é que o mandou dizer que eu era embaixador?" O secretário ainda balbuciou algo, mas logo foram conduzidos, em grande estilo, através da larga sala.

Chegaram à mesa. Tinha uma vista magnífica, sobre a cidade, junto a uma varanda isolada, num espaço algo recatado e protegido do resto da sala. O secretário pensou para consigo: "Com uma mesa destas, o homem já deve estar a pensar que, afinal, fiz bem em revelar que ele era embaixador". Enganou-se.

O embaixador estacou, fez uma cara séria e, voltando-se para o "maître d'hôtel", perguntou: "Não tem outra mesa disponível?". O homem ficou siderado. Havia, de facto, vários outras mesas vagas na sala, mas aquela era, flagrantemente, "a" mesa do restaurante, seguramente a mais requestada pelos clientes. Desejoso de agradar, o funcionário ainda tentou explicar que aquele era o melhor lugar da sala. Irredutível, o embaixador escolheu outra mesa e, já perante o embaraço e a perplexidade do seu secretário, lá se sentou, pedindo o menu e a carta de vinhos.

Passaram-se uns instantes, em silêncio, até que o embaixador olhou o secretário e lhe disse: "Meu caro, você é um jovem, este é o seu primeiro posto, ainda tem uma grande experiência a ganhar. Não devia ter dito que era o embaixador de Portugal que vinha aqui almoçar. Isso identifica-nos e coloca-nos logo sob observação". O comentário era bizarro, mas mais estranha foi ainda a revelação que se seguiu: "E sabe porque é que eu não aceitei aquela mesa, embora tivesse uma excelente vista?". O secretário não sabia, aliás, já concluíra que não percebia nada do que se estava a passar. "Porque aquela mesa que nos deram, pela certa!, é uma mesa com microfones. A nossa conversa ia ser escutada. Isto é um mundo muito complexo, meu caro. Com os anos, você verá!", disse o embaixador, já pedindo o vinho, e mudando de conversa.

O secretário ficou aquilo a que os franceses chamam "bouche bée". Começava a conhecer melhor o embaixador que lhe "calhara em rifa" e, intimamente dividido entre saber se os seus próximos anos iam ser divertidos ou complicados, perguntava-se (mas não perguntou ao seu chefe, porque percebia que já não valia a pena) que utilidade teria para os serviços secretos desse país gravarem, traduzirem e "tratarem" em termos de "intelligence" a conversa de circunstância entre um embaixador português e o seu secretário.
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