domingo, 30 de agosto de 2009

A paixão segundo...

 Ringo - Pô, eu primeiro? Logo eu, o narigudo, o palhaço da turma? Mas vamos lá. Tudo começou na minha casa mesmo. Na minha garagem. O meu pai tinha me dado uma bateria. Depois que a velha morreu (cancro), o velho me dava o que eu pedisse. Mas eu não ia pedir qualquer coisa para aproveitar o descorneio do velho. Fiquei entre a bateria e uma lambreta. Escolhi a bateria e comecei a ensaiar na garagem. O velho me deu a maior força. Era aposentado pelo INPS, mas dirigia um táxi, e tirou o táxi da garagem para dar lugar para a minha bateria. E brigava com os vizinhos que reclamassem do barulho. Encarava mesmo. O velho era faixa. Faixão. Mas o começo de tudo: um dia, o Paul passou pela frente da nossa casa de bicicleta e me ouviu tocando a bateria. Se apresentou. Perguntou se eu gostava dos Beatles. Tinha todos os discos dos Beatles. Ele morava no mesmo bairro, mas na parte mais alta, a dos bacanas. O pai dele era acho que advogado, coisa assim. Foi na casa do Paul que eu conheci o George e o John. O Paul e o John eram amigos desde criança. Um tocava baixo e o outro guitarra. E o George tocava guitarra. Já era esquisitão. Ele não ficou assim aquela coisa, meio místico, depois do que aconteceu, não. Depois da tragédia. Já era. Começámos a ensaiar na minha garagem porque a mãe do Paul não deixou ensaiar na casa deles. A casa era na parte fina do bairro, sabe como é. Mas o Paul não era besta, não. Usava cachecol até no Verão. Cachecol! Que eu não conhecia nem de nome. Mas não era besta, não.

Paul - O Ringo sempre foi um brincalhão. Nunca usei cachecol no Verão, mas gostava de me vestir bem. O Ringo aspirava perto de mim e depois inventava um nome para a loção que, segundo ele, eu estava usando: "Marraville de Bichice" ou "Me Come Nº 5". Eu sei que eles me chamavam de Bonitinho pelas costas, mas nunca liguei. Fui eu que, naquela primeira reunião lá em casa, decretei que dali em diante nos chamaríamos de "Paul", "John", "George" e "Ringo", nos vestiríamos igual aos Beatles e teríamos uma carreira igual à deles - em escala municipal, claro. Eu era, dos quatro, o único que tinha formação musical. Estudara piano desde pequeno. Mas o John e eu fazíamos os arranjos juntos. Quer dizer, os arranjos que não eram copiados, nota por nota, dos Beatles. Aquelas histórias de desentendimentos, de brigas, de ciumeiras - tudo invenção. Nem quando o John largou a Narinha e começou a namorar a Tamako, que o Ringo chamava de Tamanco, mas não na frente dele, nem aí houve briga. Pelo menos briga séria. Tanto que depois que os Beatles terminaram nós continuámos. E até fizemos sucesso. E íamos fazer mais se não fosse a tragédia. Como é? Ah, pois é. Como o John dos Beatles, o nosso John também se engatou numa oriental, se bem que uma oriental nascida em Ivoti. E depois, claro, houve a terrível coincidência do que aconteceu com o John Lennon e com o nosso John... Se bem que o George nunca achou que fosse coincidência.

George - Nada é coincidência. Tudo está escrito. Em algum lugar, nos confins do espaço ou na palma da sua mão, está escrito. Nosso fim estava no nosso começo. Nós éramos Paul, John, George e Ringo. Não éramos imitações, éramos eles em outra realidade. Nossos destinos tinham de ser os mesmos. No dia da tragédia que abateu John Lennon, exactamente no mesmo dia, soubemos o que tinha acontecido com o nosso John. Isso é coincidência? Não. Estava escrito.

John - Eu sei que eles chamam de "tragédia" a minha decisão de ir trabalhar com o pai da Tamako na transportadora deles em Ivoti. A música não estava dando nada, e eu precisava pensar na família. Está certo, eu deveria ter avisado antes de dizer simplesmente: "Não dá mais, acabou." E foi chato meu aviso coincidir justamente com o assassínio do Lennon em Nova Iorque. Mas não foi uma tragédia, não. Estou muito bem. E ficaram as lembranças daquele tempo tão maneiro. Ainda se diz "maneiro"? Meus netos vivem corrigindo a minha gíria.

Luís Fernando Veríssimo - Expresso.pt

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