Com a consolidação da nossa democracia, iludimos, sem grande consciência, as suas insuficiências, a sua fragilidade, a sua incipiência. Vem isto a propósito de uma reflexão urgente sobre espaço público, intervenção política, cargos oficiais e protagonistas do debate democrático. Mais concretamente sobre as regras que suportam o recrutamento das personalidades que, em cada momento, servem a República.
Episódios recentes - em que o 'caso Lobo Antunes' foi apenas o último capítulo - expõem, em toda a crueza, um dos traços mais reveladores da nossa imaturidade democrática. Ou seja, a captura pela lógica da estrita luta partidária de figuras que deveriam ser-lhe poupadas.
Nas democracias estabilizadas do mundo ocidental - nas 'velhas' democracias -, há um amplo consenso colectivo quanto à necessidade de preservar um escol de individualidades, cuja envergadura e cujo mérito, porque indiscutíveis e indiscutidos, nenhum interesse parcial pode aprisionar, condicionar ou diminuir. São, pois - quer-se que sejam -, uma espécie de património comum. Gente com uma autoridade natural, que se impõe em nome de um saber respeitado e, não menos, da independência, da isenção, do rigor. Também, e sobretudo, em nome da liberdade, já que esse seu estatuto reveste, por razões colectivas, um primordial interesse público.
Ora, em Portugal, nada disto se passa assim. E, portanto, nada disto é óbvio.
Sintoma fatal é a crítica habitualmente dirigida à própria exigência de entendimento entre os partidos políticos. Com efeito, vê-se aí a confissão de que tudo se esgota nos arranjos ditados pelas implacáveis aritméticas partidárias. E não se percebe que tal raciocínio é, afinal, uma pura subversão das coisas.
Na sua verdade intrínseca, a condição do apoio multipartidário, longe de poder querer significar uma divisão negociada do bolo constituído pelos lugares públicos disponíveis, deve consubstanciar o contrário: um apelo radical a critérios que superem e transcendam qualquer tentação de partidarizar o processo de escolha.
Não entender isto é adiar a possibilidade de termos uma democracia adulta. Pior: é tornar inexorável a alienação dos nossos melhores e deixar o serviço da causa pública à mercê daqueles a quem não incomoda o papel de figurantes numa comédia de pequenos tráficos e equilíbrios.
Trata-se de uma eminente questão de cultura política. Em qualquer uma das tais 'velhas democracias', João Lobo Antunes seria, ao lado de alguns (poucos) outros, alguém acima das contas e dos revanchismos da pequena política. Entre nós, João Lobo Antunes parece ter sido um nome questionável e prescindível.
Mudar isto é um imperativo nacional. E - na perspectiva prática do aproveitamento comunitário da excelência - um ditame do mais elementar bom senso. Sofia Galvão-Expresso
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