terça-feira, 25 de agosto de 2009

Ibéria?

Pondo de parte a teoria conspirativa, alimentada por alguns, de que se trata de subtis balões de ensaio, confesso que frequentemente me interrogo sobre as motivações que poderão estar na origem do cíclico surgimento, entre nós, das teses iberistas. Benevolamente, atribuo-as à síndroma sazonal da "silly season", adubadas pelo esforçado internacionalismo de outros tantos, que se entretêm a brincar com a identidade nacional, em exercícios lúdicos de alguma irresponsabilidade.
O iberismo acabou por fundar-se, historicamente, no sentimento de finis patriae que nos adveio do declínio posterior à perda do Brasil, marcado pela dificuldade em gerirmos o nosso papel intraeuropeu, no ácido confronto cruzado de ambições coloniais, que nem o carácter de algumas alianças vetustas conseguiu disfarçar. Desde então, esse tropismo, derrotista e derrotado, tende a renascer sempre que surgem conjunturas que alguns identificam com a crise, não necessariamente do país, mas da ideia atormentada que dele alimentam. Tudo isto vale o que vale, mas devo confessar que começa a tornar-se irritante a sua reiterada emergência, com alguns inocentes úteis a dar-lhe foros de dignidade, por vezes mesmo com tentativas de teorização pseudo-intelectual.
Faço parte de uma geração educada "contra a Espanha", na magnificação do papel das batalhas que nos garantiram a independência, das figuras hagiografadas de recorte heróico quase caricatural, tudo se saldando na gestação de uma desconfiança atávica face aos "ventos" que sopravam de Madrid. Os livros de um Matoso anterior e de alguns outros "genéricos" da historiografia portuguesa defendiam essa espécie de doutrina patriótica incontornável, a que a própria diplomacia portuguesa não escapou. Esse culto quase paranóico da História, hiperbolizado ao ridículo pelo Estado Novo, gerou uma espécie de "inimigo nacional" obrigatório. Ainda hoje, alguns iluminados tendem por aí a esquecer uma meridiana realidade: quase nove séculos decantaram uma identidade portuguesa bem clara que, em todas as dimensões, se distingue hoje das "Espanhas" - de todas elas. E essa distinção já nada tem a ver com antagonismo.
A comum entrada de Portugal e Espanha nas instituições europeias fez com que se atenuasse, de um modo natural e num movimento de elementar racionalidade, essa doentia obsessão anti-espanhola, tornando natural o relacionamento dos dois Estados que coexistem na península. O modo como os temas de contencioso bilateral passaram a ser tratados, de que são exemplo os casos das pescas ou da gestão dos rios comuns, provou o carácter altamente benéfico da mútua convivência dentro do quadro formal europeu. Além disso, devo confessar que, para mim, foi uma verdadeira lição ver as novas gerações portuguesas começarem a entusiasmar-se com a "movida" madrilena ou desejosas de aproveitar a riqueza de vida das Ramblas de Barcelona.
A Espanha contemporânea, na sua diversidade e complexidade, é hoje uma realidade pujante, onde um sentimento colectivo de salutar orgulho fixou uma matriz que conseguiu federar autonomias e nacionalismos muito diferentes. É um país magnífico, com uma cultura interessantíssima, um povo optimista e que, em algumas décadas, deu ao mundo a lição de como foi possível desenvolver uma sólida democracia, uma sociedade de bem-estar e de franca modernidade, que conseguiu firmar-se sobre as memórias trágicas da Guerra Civil, as pulsões nacionalistas e as ameaças da barbárie terrorista.
A serena relação com a Espanha constituiu hoje um dos pilares importantes da nossa política externa. Com Madrid, encontramos, dia-após-dia, áreas para uma acrescida cooperação internacional em imensos domínios, definindo cada vez mais linhas comuns de trabalho em instâncias multilaterais. Como disse, há dias, o rei Juan Carlos, Portugal e Espanha são "duas nações antigas, vizinhas, amigas, sócias e aliadas".
Existe hoje em Portugal uma grande simpatia pelo seu vizinho espanhol. Para que isso continue a ser assim, necessário é que continuem a existir dois países, Portugal e Espanha, como soberanias orgulhosamente diversas. Alguns não pensam assim? Deixemo-los a falar sozinhos. Portugal está aí para durar, gostem ou não.
Uma versão reduzida deste texto é hoje publicada, como artigo de opinião, no Correio da Manhã.

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