quarta-feira, 12 de agosto de 2009

Ao serviço da Nação

Miguel Sousa Tavares

 

1 O problema de Isaltino Morais é que a cara dele condiz com o que o tribunal o acusa de ter feito. Não apenas as provas e as suas fracas justificações: a cara, também. Ensinou-me a minha mãe, há muitos anos, que se deve olhar bem para a cara das pessoas, antes de ajuizar sobre elas. Confesso que é um conselho que nem sempre me lembro de seguir e, quando me esqueço de o fazer, normalmente acabo por me arrepender. O tribunal acusou e condenou Isaltino por coisas nada brandas, no exercício de funções públicas: fuga ao fisco, branqueamento de capitais, abuso de poder e corrupção passiva. E eu olho para a cara dele, penso na inexplicável fortuna do sobrinho da Suíça, lembro-me das declarações da ex-secretária e recordo a 'arrogância', de que fala a sentença, com que ele respondeu às acusações, e acho-o bem capaz disso.

Pois, é verdade, permanece a presunção de inocência. Enquanto todos os recursos que vão ser sucessivamente interpostos não estiverem decididos, enquanto esta sentença não transitar em julgado (o que irá demorar anos), Isaltino Morais tem o direito a ser presumido inocente. Mas as coisas mudaram muito com a sentença: um tribunal já o julgou culpado e agora é ele que tem de provar a sua inocência, e não o tribunal que tem de provar a sua culpabilidade. Tem de provar que o tribunal se enganou e que se enganou grosseiramente, julgando-o culpado de quatro crimes dos quais não terá cometido nenhum.

E isto é apenas o lado jurídico da questão. Porque, politicamente, Isaltino está morto - ou melhor, devia estar, se tivesse vergonha na cara e os seus eleitores também. Não apenas pela sentença condenatória, mas por uma coisa bem mais simples: por ter declarado em julgamento que escondera dinheiro do fisco "porque toda a gente o faz". Que ele se queira recandidatar a novo mandato, como se nada de grave tivesse entretanto sucedido, é um direito que lhe assiste e que, em situações idênticas, uns aproveitam e outros não - conforme os valores que defendem, o respeito que têm pelos eleitores e pelas regras do jogo. Mas quando alguém que exerce funções públicas há vinte anos, que já foi ministro e que está à frente de uma das principais autarquias do país, vem fazer o elogio público da fraude fiscal, é intolerável que se queira manter em funções. Até porque a experiência ensina que quem não respeita o dinheiro do Estado na hora de o pagar, também o não respeita na hora de o gastar: quem foge a pagar os impostos que deve não pode gerir o dinheiro dos impostos dos que os pagam. Menos do que isto é a pouca vergonha absoluta.

E não me venham com a pretensa 'legitimidade política' ou 'democrática' versus 'legitimidade judicial'. Sempre fui contra as tentativas (que as houve e às vezes regressam), de caminharmos para uma 'República de Juízes', mas o que aqui está em causa é exactamente o oposto: pretender que o voto popular pode usurpar, por si, a função judicial. Se isto fosse tolerável, no limite acabaríamos a ditar sentenças criminais por votação popular. Não há nenhuma votação ou eleição que possa eximir os Valentins, as Fátimas, os Avelinos e os Isaltinos da prestação de contas à Justiça, como qualquer outro cidadão. Mais do que o voto, a democracia é o Estado de Direito, onde a lei é igual para todos e todos respondem perante ela e perante tribunais independentes da política e do poder político.

E não me venham também com a grande e incontroversa obra autárquica de Isaltino Morais em Oeiras, porque não são estes factos que foram julgados em tribunal. O que foi a julgamento é saber se os meios, todos os meios, justificam os fins. E a resposta só pode ser não, a menos que queiramos reeditar aqui o Brasil do tempo do prefeito Ademar de Barros e do seu imortal slogan 'roubo, mas faço!'. Com licença da actriz Eunice Muñoz e do general Otelo Saraiva de Carvalho, o que está em causa é mais importante do que o seu bem-estar em Oeiras. Isto é tão claro, que até custa a perceber que haja quem o não veja.

2 Em férias, li uma extraordinária entrevista de um militar em serviço no Afeganistão. Dizia ele, em suma, que os 5000 euros mensais que recebe por estar lá deslocado em missão da NATO "não pagam o risco" de ali estar. Ora, meditando nesta declaração, começo por dizer que a missão militar no Afeganistão é, em minha opinião, de interesse nacional - ao contrário do que sucedeu com as missões no Iraque e na Bósnia, onde estivemos apenas como peões dos interesses dos Estados Unidos. No Afeganistão, trata-se de combater um terrorismo sem fronteiras, de justificar a nossa filiação na NATO e na UE, e até de justificar a própria existência das Forças Armadas, pois se já não temos inimigo na fronteira nem Império a defender, ou as FA existem para isto, ou não têm razão de existir.

Depois, tanto quanto me recordo, e com o devido respeito pelo risco da missão em causa, não morreu ainda nenhum militar do contingente português no Afeganistão em combate. E, tanto quanto sei, o serviço militar é voluntário e a missão no Afeganistão também. Assim sendo, ultrapassa-me por completo que um militar, que escolheu voluntariamente essa carreira e até aquela missão, a troco de 5000 euros por mês, se queixe publicamente de correr riscos. Será que confundiu as FA com o Exército de Salvação?

Corre também agora uma virtuosa discussão entre o Governo, os militares e a GNR, a propósito do estatuto remuneratório desta corporação paramilitar. Queixam-se os militares de que o Governo pretende contemplar a GNR com uma série de subsídios, enquanto que eles apenas têm um subsídio de 'condição militar', equivalente a 20% da remuneração base. Se já essa coisa do 'subsídio de condição militar' me deixa perplexo (haverá um subsídio de condição médica, de condição de engenheiro, de condição de escriturário?), os subsídios que o Governo pretende agora abonar a favor da GNR são, de facto, de estarrecer. Ora vejam: subsídios de escala, de plantão, de prevenção, de força de segurança, de patrulha, de comando, de investigação criminal e de 'serviços especiais' (seja isso o que for e espero que não seja regar o jardim do general ou transportar a mobília do comandante).

Perdão: mas existe alguma força policial do tipo GNR, em qualquer lado do mundo, que não faça escalas, prevenções, plantões e patrulhas? Que não faça investigação criminal? Que não tenha comando? Não estão aqui reunidas, afinal, todas as funções e tarefas da GNR, começando por ser a de uma 'força de segurança'? Se cada uma das suas tarefas tem direito a um subsídio especial (e todos eles cumulativos, afinal), o que resta de um GNR que não seja subsidiável pelo Estado - o uso da farda, o transporte em viatura, os danos auditivos do toque da corneta?

Os militares das FA estão justamente revoltados com tanta benesse a favor da GNR. E, portanto, querem bani-las? Não, querem igual. Ah, classe média, prepara as costas, que o pau ainda vai doer mais a partir de Outubro!

 

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