sábado, 8 de agosto de 2009

O chapéu


Uma das rotinas mais interessantes dentro do Ministério dos Negócios Estrangeiros foi, durante muitos anos, o chamado "correio de gabinete". Tratava-se de transportar uma mala diplomática, portadora de documentos de elevada confidencialidade, função de que eram quase sempre encarregados os diplomatas mais jovens. Todas as semanas, um funcionário circulava entre várias capitais, levando consigo uma pasta, fechada com selos de chumbo. Era normalmente pequena, mas também podia acontecer ter dimensões bem maiores, sendo nesse caso complicado (embora sempre obrigatório) assegurar o seu transporte na cabine dos aviões, nunca perdendo o volume de vista.

O roteiro de quem ia "de mala" foi variando, em função de diversos factores e conjunturas. Na Europa, recordo ter-me deslocado, por mais de uma vez, a Londres, Bruxelas, Viena e até a Belgrado. Madrid, Paris e Estocolmo, se bem me lembro, também foram abrangidas pelo circuito deste tipo de "malas acompanhadas". Viena era o centro de contacto com as nossas embaixadas das capitais "comunistas" e os colegas nelas colocados estavam sempre ansiosos para dar um salto à capital austríaca, para buscar ou trazer essa correspondência. Fora da Europa, ia-se a Nova Iorque e a Washington.

Há que confessar que era uma tarefa bastante agradável: uma semana de dispensa de serviço e uma viagem, com ajudas de custo, por cidades simpáticas, embora um pouco numa correria (em Londres ficava-se um dia mais e eramos alojados num pequeno quarto, no edifício da chancelaria). Embora houvesse como que uma escala na atribuição deste encargo, existiram sempre, no Ministério, os chamados "papa-malas", que tinham meios de obter informação prioritária sobre a indisponibilidade pontual dos funcionários escalados e, de imediato, se voluntariavam para os substituir. Às vezes, chegado o bom tempo, até diplomatas bem mais velhos, já mesmo conselheiros de embaixada, faziam um pouco discreto lóbi para "irem de mala", pela vontade de efectuarem uma bela viagem à custa do erário.

Hoje, vistas as coisas à distância, tendo a concordar que uma das vantagens concretas desta instituição dos "correios de gabinete" , num tempo em que se viajava muito menos, era ajudar a aculturar os jovens diplomatas com o mundo exterior, ainda antes de serem colocados no seu primeiro posto.

A história que vou contar, verídica e clássica nas Necessidades, passa-se em Lisboa, numa determinada repartição, creio que no início dos anos 60.

Um velho e prestigiado embaixador está à conversa numa sala onde trabalham diversos diplomatas. A certo momento, fica a saber-se que um dos jovens secretários presentes vai "de mala" na semana seguinte. O rumo da conversa, por uma qualquer razão, deriva para a questão dos trajes e fala-se de usar ou não do chapéu. O embaixador volta-se, então para o jovem secretário que irá "de mala" e inquire: "E o colega, usa chapéu?". Ser tratado por "colega" por um embaixador "chevronné" era uma distinção que, à época, deixava os mais novos orgulhosos e, desde logo, quase obsequiosos.

O rapaz, um tanto aturdido, responde que ainda não, que nunca tinha usado chapéu. O embaixador, pródigo em recomendações, adianta: "Meu caro amigo, usar chapéu, na Carreira, não é , de facto, obrigatório. Mas é um hábito que fica sempre bem, que dá muita classe. Se o meu amigo quer um conselho, compre um chapéu. Vai ver que, em algumas ocasiões, lhe fica muito bem e lhe dará jeito".

Seduzido pela atenção que lhe era dispensada por tão alta figura da "Casa", o jovem diplomata, já rendido à sugestão, deixa escapar que, pensando bem, vai acabar por comprar um chapéu. Aliás, recorda-se que até já tinha pensado nisso, mas nunca se tinha decidido, em definitivo. Mas agora, "já que o senhor embaixador recomenda", vai mesmo comprar um.

Nesse momento, o embaixador exclama: "Olhe lá! Lembrei-me agora! Você vai a Londres! Não há melhor cidade do mundo para chapéus. Mais do que isso: estamos na época dos saldos! E em Londres onde você encontra estupendos chapéus é no Bates, ali na Jermyn Street. São magníficos! Porque não aproveita, você vai estar lá dois dias, dá uma saltada ao Bates e compra um chapéu?".

O jovem secretário sente-se impulsionado, entre o convencimento e uma subliminar intimidação, e lá concede: "De facto, é uma boa ideia. Vou passar por lá e compro um chapéu.". "Faça isso, homem, faça isso, é uma bela oportunidade!", diz o embaixador, dando ares de se encaminhar para a porta de saída da sala.

De repente, porém, o embaixador estaca. E, voltando-se para o jovem colega, inquire: "Então você vai mesmo comprar o chapéu?". "Vou, vou" diz o outro, já num tom entre o decidido e o resignado, começando a estranhar a insistência. Aí, o velho diplomata, como por casualidade, lança-lhe: "E vai ao Bates? Excelente! É, de facto, a melhor opção! Aliás, dá-se uma coincidência curiosa, de que agora me recordo: eu tenho um chapéu a compor, precisamente no Bates. Se o colega lá vai comprar o seu, podia levantar o meu chapéu e trazer-mo. O arranjo já está pago. Tem aqui talão. Fico-lhe muito grato...."

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