Francisco Seixas da Costa
Na minha infância, em Vila Real, praticamente só havia brancos. O primeiro preto que recordo ter aparecido na cidade foi o Ângelo, um jogador de futebol, depois reconvertido em massagista, que por lá ilustrava a "diferença". Era um homem encantador e educado, que conquistava pelo seu trato humano. Casou com uma senhora branca e, lembro-me bem, isso provocou localmente alguns comentários de desaprovação. (Por que razão ele escreve "preto" e não "negro"?) A imagem que, à época, a minha geração cultivava dos pretos era mais de estranheza do que hostilidade. Verdade seja que os livros e as coleções de cromos sobre as raças humanas, então muito populares, mostravam-nos esses outros mundos bizarros e apenas estimulavam uma certa curiosidade antropológica. Os pretos do "Tintin no Congo" não eram muito diferentes, no seu exotismo, do "preto da Casa Africana", que fazia sorrir os passantes. O preto que nos era dado por essas imagens era uma espécie de criança grande, parada no seu tempo mental. Não havia racismo em Portugal? Pois, pois... (E ele insiste! Escreve "pretos"...) Depois de 1961, no nosso imaginário juvenil, fomos estimulados a identificar os pretos com os "terroristas". Para quem hoje não saiba ou possa ter esquecido, lembro que os "terroristas" eram os pretos que "atentavam contra a soberania portuguesa no Ultramar". O facto dos primeiros ataques da UPA (União dos Povos Angolanos), antecessora da FNLA, terem dizimado, de forma particularmente bárbara, muitos civis angolanos (e, para nossa surpresa, também muitos pretos, ditos "fiéis" aos portugueses, isto é, aos brancos), tornou vulgar na comunicação social de então o conceito de "terroristas", logo, de forma simplificada, apodados de "turras". No ambiente jingoísta da época, um preto era um "turra". (Pior! Agora fala de "pretos" e de "turras"...) Para dar mostras de abertura, o regime ditatorial português promovia os seus pretos de estimação. Para além do futebol, onde o "4-2-4" era um espaço de convivência inter-étnica que mostrava ao mundo como sabíamos integrar com sucesso o pé-de-obra colonial, a ditadura mostrava alguns dos "seus" pretos, que apresentava ao mundo como a prova provada da abertura do Portugal-do-Minho-a-Timor e da nossa ímpar capacidade de convivência inter-étnica. Uma dessas caras foi Pinheiro da Silva, que, creio, foi secretário provincial da Educação de Angola e morreu há muito pouco tempo. O que o regime não permitiu que se soubesse através da imprensa, porque não ia bem com a história que pretendia propagar, é o episódio em que o deputado salazarista Júlio Evangelista insultou publicamente Pinheiro da Silva e, perante a reação deste, que se preparava para vingar fisicamente a humilhação, lhe atirou à cara: "Alto aí! Preto não bate em branco!" (Que história sórdida! Mas, se calhar, é verdadeira!) Mas a que propósito vem isto hoje, perguntará o leitor? É muito simples: surge a propósito da afirmação de um senador italiano que ontem decidiu qualificar de "orangotango" uma ministra do seu país. O mundo evoluiu muito. A mesma América que, há escassas décadas, impedia a entrada de pretos em certos autocarros, elegeu Obama. A África do Sul, que não permitia senão a brancos que se sentassem em certos bancos de jardim, revelou Mandela como uma figura ímpar no seu humanismo. E, no entanto, neste século XXI, continuam a subsistir e a ser eleitos atrasados mentais como o tal senador italiano. E a revelarem-se diariamente, no anonimato cobarde dos comentaristas nos "sites", um racismo e uma xenofobia larvares, que mostram que há um Portugal desconhecido (ou menos conhecido) que espera por nós, ao virar da esquina do populismo. Porque razão utilizei a palavra "preto" e não "negro"? Porque há muito que me convenci que uma postura anti-racista não se demonstra pelo léxico que se utiliza, por muito que alguns puristas nos queiram convencer do contrário. Eu digo, indiferentemente, preto ou negro e desafio quem quer que seja a inculpar-me do menor racismo nas minhas ações. Tenho amigos pretos, ou negros, se quiserem, e a sua cor é uma coisa que só os outros me lembram. A tolerância e a capacidade de convivência com a diferença é uma atitude de vida, de respeito pelos outros e, muito em especial, de orgulho em fazermos parte de um país que, no plano internacional, é hoje distinguido pelas suas políticas de integração das comunidades imigrantes (sabiam?). E onde, contrariamente a outras sociedades mais desenvolvidas, nunca se ouviu um eleito nacional assumir publicamente palavras tão torpes como as do triste senador italiano. Sobre a questão do "preto" e do "politicamente correto" (para além do que um dia já referi aqui), recordo uma pessoa que, nos seus primeiros tempos do Brasil, foi um dia apanhada a dizer "Ouro Negro", porque temia que, ao falar em Ouro Preto, estivesse a pisar alguma linha vermelha (ou "encarnada", como o salazarismo subtilmente recomendava e um certo ridículo social lisboeta teima em querer impor). |
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