Muitos portugueses identificam-se como católicos, muitos são mesmo crentes, e parte desses crentes é praticante. Uma minoria pertence a várias instituições da Igreja, no plano social, cultural e assistencial. Sem eles desabaria a frágil rede que protege os mais pobres e fracos na sociedade portuguesa, e a que o Estado dá cada vez menos e pior. Uma mais pequena minoria é militante católica apostólica romana, em vários grupos "progressistas" e outros em vários grupos "integristas". Estas classificações são muito grosseiras, mas servem para o efeito.
Mas cada vez mais portugueses são agnósticos ou, melhor ainda, indiferentes à experiência religiosa na sua vida quotidiana, mesmo que ocasionalmente entrem numa igreja em funerais, baptizados e casamentos. Um cada vez maior número de portugueses faz a sua vida com considerável indiferença face à Igreja e organiza-a em muitos aspectos em que a Igreja e religião tinham papel no passado e hoje têm cada vez menos. Não baptiza os seus filhos, não se casa pela Igreja, é hostil à moral sexual cristã, e vive como quer e lhe apetece, sem ser afectado em nada pela instituição, a não ser quando esta aparece associada a qualquer escândalo, como a pedofilia, e então julga-a com ainda maior severidade, reconhecendo-se nessa reacção mais próximo da Igreja do que desejaria e admite. Contradições, de que o mundo é feito.
Nos últimos dias, foi impossível a todos não observar os vários episódios do "espectáculo" papal, em parte involuntário, noutra parte desejado. Uso aqui o termo sem especial sentido pejorativo, que também o tem. Desde o momento da declaração de renúncia, que o Papa fez em latim e que só uma jornalista e os dignitários da Igreja que o acompanhavam perceberam porque conheciam a velha língua morta da Igreja, até à sucessão de aparições, discursos e mensagens, todos os passos e palavras daquele homem vestido de forma única, de branco e vermelho, na janela do Vaticano, no carro branco de nome ridículo, no helicóptero, a cuja passagem tocavam os sinos, uma coisa moderna chamando uma coisa antiga, um mundo fortemente simbólico que se tornou actual no ecrã por onde se vê o mundo, a televisão.
A sua figura é a de um homem cansado e velho, "sem forças" para dirigir a "barca petrina", e por isso o seu acto de renúncia foi visto como contraditório com o sofrimento público, a revelação da doença e por último da morte quase em directo, diante dos fiéis reunidos na Praça de S. Pedro, de João Paulo II. Já o escrevi e repito, os dois Papas sucessivos, cuja colaboração e estima foi intensa, não quiseram dizer nada de contraditório entre si, mas apenas coisas diferentes: um, que a velhice e a morte fazem parte da condição humana; outro, que não há razões para o Papa não se retirar se entender que a Igreja precisa de força e vitalidade para defrontar as suas dificuldades. Cada um testemunha, a seu modo, a humanidade do papado, e por isso ambos serviram a sua causa e a sua igreja.
Nos seus últimos dias de Papa, Bento XVI apresentou-se diante de audiências globais como algo de muito diferente do comum, como uma "estranheza", ou um "mistério" que nos interpela. Desse ponto de vista, foi um sucesso "mediático" porque é único: um homem alquebrado, mas com um sorriso poderoso, falando várias línguas de um modo geral bastante bem, lendo textos simples mas densos, cheios de história, onde os dois mil anos da Igreja se reflectem num fio condutor que apela a muitas memórias da cultura ocidental e da religiosidade. Mas, mais do que isso, um homem que sabemos ser um grande intelectual, um produto da exigente cultura universitária alemã, mas que se percebe ter fé, acreditar, e que, numa timidez evidente mas segura, fala com Deus tratando-o por Tu.
O "espectáculo" papal dos dias de hoje não converte os incréus, porque a sua incredulidade é mais forte e mais funda, por boas e más razões, mas abre-os a uma certa perplexidade, nalguns casos mesmo sedução, da e pela fé. Ver alguém que acredita, como o Papa Bento XVI, agora Papa Emérito, de uma forma tão gentil, sem aí ser frágil e "sem forças", faz muito para restaurar um respeito pela espiritualidade, uma atenção ao "mistério" ao sentimento do outro, mesmo que não restaure a fé, que é um "dom" e não depende dele.
É por isso que este Papa fez muito mais pela Igreja do que muitos cristãos pensam que fez, resultado de terem ficado órfãos em Bento XVI da religiosidade afectiva de João Paulo II, daquela bondade de pater que beijava a terra e peregrinava pelo mundo todo. Bento XVI é uma outra espécie diferente de "peregrino", autoclassificação que deu a si próprio na sua última declaração ainda Papa no seu belo italiano de adopção: "Voi sapete che io non sono più Pontefice, sono semplicemente un pellegrino che inizia l"ultima tappa del suo pellegrinaggio in questa terra."
Para João Paulo II, cuja acção é muito intimamente complementar da de Bento XVI e vice-versa, a preocupação foi sempre reforçar a Igreja nas suas mais seguras fontes de continuidade e influência: o cristianismo popular, mariano, orgânico, "comunitário", como o era na sua Polónia natal, assegurando-lhe a liberdade de culto, e a autonomia das suas instituições, em particular as ligadas ao ensino. O seu olhar dirigia-se aos sítios onde o cristianismo estava a crescer e a consolidar-se, em África, na América Latina, na Ásia, a partir do povo comum, da religiosidade popular e simples. Daí também o seu papel no combate ao comunismo onde participou como inspirador e conspirador. O "Papa polaco", anticomunista, foi sempre visto pelo Kremlin como um dos grandes problemas na fase final da crise do sistema comunista, e um actor decisivo nessa queda.
Bento XVI era diferente, pela sua carreira, pela sua acção intelectual, como teólogo, pela sua acção como jovem consultor dos bispos alemães que organizaram no Vaticano II a resistência ao poder da Cúria Romana, assim como, mais tarde, como alto responsável na hierarquia da Igreja na defesa da ortodoxia da doutrina. Este último papel colocou-o na mira dos "progressistas" que o tinham como adversário capaz e duro, elevando o debate intelectual, teológico, a níveis que apenas poucos, como era o caso de Hans Kung, eram capazes de aceder. Mas Bento XVI, quer como Joseph Ratzinger, quer como Papa, sabia muito bem que para defrontar a competição com a descrença no mundo contemporâneo, era preciso resistir ao "progressismo" que descaracterizava a Igreja, a tornava numa variante profética do marxismo na "teologia da libertação", abrindo-a de forma perversa a um mundo que se tinha feito contra ela e sem ela, e que acabaria por a dissolver no "século" sem diferença. A resistência à "modernidade", e foi o próprio Ratzinger que o lembrou, é mais moderna e interpela mais a descrença, do que a contínua cedência ao "mundo" secular, aos seus hábitos e costumes. E foi também por isso que, ao associar o seu acto prosaico de renúncia ao papado a uma "peregrinação" mística e de intensa religiosidade, apelou aos incréus, seus pares na mesma tradição greco-latina da cultura ocidental que tanto prezava, e fez muito mais pela "propaganda da fé" do que alguns dos seus pares mais modernizadores reconhecem.
Usou o "espectáculo" para sair dele para uma dimensão muito alheia ao nosso quotidiano vulgar, retomando o sentido do seu nome de Papa, como o disse na sua última audiência do dia 27 de Fevereiro:
"O "sempre" é também um "para sempre": não haverá mais um regresso à vida privada. E a minha decisão de renunciar ao exercício activo do ministério não revoga isto; não volto à vida privada, a uma vida de viagens, encontros, recepções, conferências, etc. Não abandono a cruz, mas permaneço de forma nova junto do Senhor Crucificado. Deixo de trazer a potestade do ofício em prol do governo da Igreja, mas no serviço da oração permaneço, por assim dizer, no recinto de São Pedro. Nisto, ser-me-á de grande exemplo São Bento, cujo nome adoptei como Papa. Ele mostrou-nos o caminho para uma vida, que, activa ou passiva, está votada totalmente à obra de Deus."
Boa viagem, peregrino.
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