Francisco Seixas da Costa
Aos diplomatas colocados num determinado posto é pedido um esforço contínuo de previsão sobre o que pode vir a acontecer na vida política local. Às vezes, torna-se relativamente fácil fazer prognósticos, outras vezes, a indecisão permanece até ao momento de um sufrágio ou de um qualquer outro sobressalto político. Esse trabalho é sempre feito tendo como fundo referencial o quadro de interesses que o país a que o diplomata pertence tem por obrigação defender, tentando perceber em que medida uma eventual mudança política poderá, ou não, colocar em causa tais interesses ou afetar a vida dos seus nacionais que residem no país. Numa perspetiva mais alargada, importa também tentar analisar se isso pode acarretar consequências sobre as alianças ou quadros multilaterais em que os dois países se inserem. Há menos de um ano, a França teve dois processos eleitorais consecutivos, para escolha do seu presidente e para o seu parlamento. Como embaixador em Paris, foi meu objetivo, durante meses, tentar prever, para informação das minhas autoridades, que diferenças traria, para os interesses portugueses, uma possível vitória da então oposição socialista - já que era mais ou menos evidente o que ocorreria se acaso as forças no poder viessem a ser reconduzidas. Não havendo, no plano dos interesses bilaterais imediatos, nenhum dossiê no qual uma eventual vitória dessa oposição realisticamente nos devesse vir a afetar, creio que posso revelar que o principal "esforço de pesquisa" se centrava na atitude que uma nova administração poderia vir a ter face ao processo de ratificação, então em curso, do chamado "tratado orçamental" europeu. Mais acessoriamente, tentávamos perceber se as relações entre a França e a NATO sofreriam alterações e, num quadro mais geral, procurávamos desenhar, por antecipação, que mudanças poderiam ocorrer na sua política externa, em particular face a quadrantes geopolíticos para nós tidos por relevantes. Com o objetivo de obter "sinais" sobre as intenções de uma possível futura administração socialista, procurei, com um pequeno grupo de colegas embaixadores, discutir com interlocutores qualificados da área socialista quais poderiam ser as inflexões de política que, na hipótese do seu acesso ao poder, tinham intenção de introduzir. Foi um trabalho muito interessante, que permitiu antecipar muito do que veio a acontecer - como os arquivos do MNE, daqui a algumas décadas, poderão testemunhar. Devo dizer que, nesse esforço, passei várias horas em pequenos-almoços ou almoços de trabalho, ou em reuniões em "petit comité" ao final de tardes, com várias pessoas que hoje têm lugares destacados no governo francês - mas também com outras, menos conhecidas, que identificámos como oráculos relevantes junto do poder ascendente. Como é evidente, interessavam-nos menos as questões que envolviam as políticas públicas na ordem interna (as quais, contudo, foram por nós escalpelizadas quanto possível) e, bastante mais, áreas como a política externa, a política de defesa ou as grandes opções em matéria de política europeia - muito em especial as que se prendiam com o futuro do euro. Um dos interlocutores, então praticamente desconhecido da opinião pública, que mais me marcou nesses discretos contactos chamava-se Jérôme Cahuzac. Era um deputado, médico de profissão e especialista em Finanças públicas, cujo discurso de grande rigor e precisão, a sua completa "maîtrise" dos dossiês, o apontava claramente para a sensível pasta do Orçamento (em França, o lugar ministro do Orçamento é uma pasta que, se bem que formalmente subordinada ao ministro da Economia e Finanças, dispõe de um poder autónomo muito superior ao de um simples secretário de Estado ou ministro adjunto). Não nos enganámos. Jérôme Cahuzac foi uma das mais sólidas peças nestes primeiros meses de administração Hollande. Com uma competência reconhecida pelos adversários e com uma determinação temida pelos colegas de governo (por alguma razão, lembrava-me a minha amiga Manuela Arcanjo), revelou-se uma peça essencial para a França conseguir pôr em prática um ambicioso e difícil programa de redução do seu défice. Cahuzac pediu há dias a demissão. A acusação de que, há mais de uma década, pode ter tido uma conta bancária não declarada na Suíça obrigou ao seu afastamento. Não tenho a menor opinião sobre se é ou não culpado, nem isso vem aqui para o caso. Apenas reitero que foi, no plano intelectual e no domínio das grandes questões financeiras, das personalidades políticas francesas que mais me impressionaram. |
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