terça-feira, 7 de maio de 2013

Elvas e a diplomacia

Francisco Seixas da Costa

No próximo dia 10 de junho, Elvas vai ser palco das comemorações do Dia de Portugal. É uma distinção bem merecida para uma cidade que também irá, em breve, comemorar, um ano da sua elevação a Património Mundial da UNESCO.

 

Tive alguma coisa a ver com essa "operação" e, por essa razão, foi com prazer que, há quase duas semanas, recebi a medalha de ouro de Elvas, durante a cerimónia pública que consagrou os 500 anos da sua elevação a cidade. A inclusão de Elvas e das suas fortalezas na lista da UNESCO, durante a reunião anual do respetivo Comité, que teve lugar em junho de 2012, em São Petersburgo, foi um trabalho que me deu muita satisfação.

 

Porque estes exercícios nos fazem aprender sempre alguma coisa, acho que vale a pena registar alguns pormenores desse processo, porque ele é significativo e instrutivo do que pode ser uma ação diplomática. Desde que feita com algum jeito e não menos sorte.

 

Para a reunião de São Petersburgo, Portugal levava na sua agenda um objetivo prioritário: tentar obter do Comité do Património a possibilidade da continuidade das obras em curso na barragem da foz do rio Tua, sem com isso colocar em causa o estatuto de Património mundial de que o Alto Douro Vinhateiro dispõe, desde há anos. A UNESCO pretendia a suspensão imediata dos trabalhos. Foi-nos possível reverter essa posição e sustentar o pedido de uma nova avaliação, da qual viria a resultar, meses mais tarde, uma conclusão amplamente favorável aos interesses que o Estado português entendeu dever defender.

 

Nas restantes questões que estavam na agenda daquilo que aquele Comité iria apreciar, o caso da elevação de Elvas ao estatuto de Património mundial era apresentado com base num relatório negativo. A UNESCO considerava não estarem ainda colmatadas algumas deficiências no processo de candidatura, pelo que aconselhava que o assunto viesse de novo a ser visto em 2013. Os problemas apontados faziam parte de uma lista de cerca de uma dezena, três dos quais eram considerados totalmente condicionantes.

 

A delegação portuguesa partiu assim para a Rússia sem ter o caso de Elvas nas suas preocupações. Considerava - e eu, como embaixador junto da UNESCO, partilhava também essa perspetiva  - que todas as nossas "baterias" diplomáticas deviam concentrar-se no caso do Tua, pelas suas imensas implicações financeiras, pelo que Elvas poderia aguardar um ano mais, o que nos daria a possibilidade de colmatar os pontos em falha no respetivo processo. Por essa razão, sugeri à municipalidade de Elvas que apenas enviasse um especialista, para acompanhar o debate e recolher lições para a discussão de 2013.

 

As coisas acabaram por ter, porém, um rumo diverso. Resolvido positivamente o problema do Tua, e ao acompanhar atentamente os trabalhos, comecei a dar-me conta de que, em mais do que um caso, alguns relatórios negativos da UNESCO face a propostas para novas qualificações como Património Mundial eram contrariados pelo voto maioritário do Comité. A doutrina dominante para explicar isto, e que também atravessava a maioria da delegação portuguesa, tinha a ver com a ideia de que se tratava de países "do Sul", face aos quais haveria uma tradicional maior complacência. Embora a minha experiência da UNESCO fosse recente (era embaixador junto da organização, em acumulação com as minhas funções junto da França, há menos de cinco meses), esta perspetiva "eurocêntrica" começou, contudo, a não me convencer. E, a certa altura, dei por mim a matutar sobre se não poderia haver ainda uma janela de oportunidade para o caso de Elvas, libertos que estávamos já, com um sucesso que não deixava de ser prestigiante para a nossa imagem negocial, da questão do Tua.

 

Chegado o momento da apreciação do caso de Elvas, a UNESCO apresentou, como previsto, a proposta para diferir no tempo a aprovação da decisão que lhe respeitava. E lá elencou os pontos negativos, com três dentre eles a serem anunciados como totalmente impeditivos de uma decisão logo em 2012. Na lógica normal das coisas, o assunto encerraria ali e passar-se-ia ao ponto seguinte.

 

Foi então que um dos 21 membros do Comité, "trabalhado" discretamente por mim horas antes, perguntou ao Comité se não seria correto que fosse dada a palavra ao delegado português - porque só com um convite expresso essa intervenção poderia ter lugar. Na ausência de objeções, e numa apresentação que já tinha articulado tecnicamente com o especialista que Elvas tinha mandado à reunião, procurei rebater o argumentário que a UNESCO tinha apresentado, revelando os "importantes" avanços feitos, precisamente nos tais pontos tidos por essenciais. E perguntei se, perante essa "evidência", não seria mais correto tomar uma decisão, ali e agora, sem a adiar mais.

A cara dos representantes da UNESCO foi de alguma surpresa e não menor desagrado, porque pensavam, até então, que a aprovação do adiamento do caso de Elvas eram "favas contadas". Tal como eu, devem, nesses instantes, ter sentido o "mood" do Comité a mudar, tanto mais que a apresentação de um belo conjunto de fotografias das fortalezas de Elvas tinha claramente impressionado o Comité. Na discussão que se seguiu, na sequência de outras "boas vontades" entretanto manifestadas, que conseguira mobilizar junto de alguns outros delegados (passar vários dias numa conferência, se não ficarmos "acantonados" junto dos colegas nacionais, acaba por criar um útil círculo de relações), as quais ecoaram positivamente a nossa proposta, percebi que o sentido do debate começou a apontar em favor dos nossos interesses. Alguma experiência multilateral ajudou a ultrapassar alguns obstáculos de natureza formal que entretanto surgiram. E, para surpresa de quase toda a gente, o Comité viria a aprovar por unanimidade uma resolução que atribuía a Elvas o estatuto de Património Mundial.

Os relatores da UNESCO não ficaram muito satisfeitos comigo, porque lhes havia "puxado o tapete" nos dois casos - Tua e Elvas -, mas, aqui entre nós e como se diz na minha terra, esse é o lado para onde eu durmo melhor...

 

Elvas é hoje Património Mundial da UNESCO e quem visitar essa bela terra raiana do Alentejo pode perceber bem a justiça desta qualificação.


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