segunda-feira, 1 de outubro de 2012

Ainda o 28 de setembro


 

Já falei neste blogue, por mais de uma vez, do dia 28 de setembro de 1974 (em especial aqui e aqui).

Recordo hoje um episódio vivido na sequência dessa data marcante para a Revolução portuguesa.

O general Spínola, presidente da República, na ressaca dos acontecimentos e das manifestações desse dia, havia convocado o Conselho de Estado, para 30 de setembro. Fora anunciado que, nessa altura, faria uma comunicação ao país, em transmissão pela televisão e rádios, diretamente de Belém.

Eu estava pelo palácio da Cova da Moura, onde era adjunto da Junta de Salvação Nacional, a que Spínola presidia e que, como tudo indicava, acabaria em breve a sua existência. Juntámo-nos uns tantos, de tendências político-militares bastante diversas e até antagónicas, em torno de um televisor, para ouvir a intervenção do chefe de Estado.

Os tempos eram muito tensos, o ambiente político era de cortar à faca. Naquela sala estava gente cujo futuro iria ser, a partir desse dia, muito díspar. Lembro-me que havia por lá um general, regressado de Angola, que sabíamos ser um "spinolista" ferrenho, que estava acolitado por figuras que não conhecíamos, com cara patibular, de quem tinha ficado do lado dos derrotados nas batalhas das vésperas. Todos antecipávamos as palavras do "velho" (como os "spinolistas" gostavam de chamar à sua figura tutelar). A ideia mais comum era a de que se demitiria em direto das funções, mas outros cenários, nomeadamente de alguma "resistência" à recente derrota nas ruas dos seus apaniguados, ainda eram plausíveis.

O discurso começou, com a voz rouca do general, naquele registo épico e um pouco teatral que era o seu, a dramatizar, como era de esperar, a situação política, na exata linha das suas anteriores frustradas tentativas de fazer levantar a suposta "maioria silenciosa" do país. O diagonóstico que saía da sua boca era ácido e impiedoso para os vencedores dessas horas. Todos olhávamos o aparelho de televisão mas, verdadeiramente, policiávamo-nos pelo canto do olho, sabendo que cada um "lia" as palavras de Spínola de forma diferente. Para mim, como militar "a prazo", que me via do lado vencedor da contenda, o momento era excitante.

A certo passo da intervenção, mas ainda antes do anúncio da demissão do "caco" (como Spínola também era conhecido, por virtude do seu monóculo), um homem da Marinha, o Duarte Lima (não, não é esse!), não se conteve e fez ecoar pela sala alguns adjetivos qualificativos, muito pouco abonatórios do presidente da Junta de Salvação Nacional, a cujos quadros pertencíamos e em cuja sede estávamos. Praticamente, ninguém o acompanhou na expressão vocal dos sentimentos que o motivavam, os quais, no fundo mas apenas no íntimo, eram partilhados pela maioria dos presentes. Mas, com os diabos!, Spínola era um derrotado daqueles dias e havia outras maneiras de "explorar o sucesso", tanto mais que "não se dispara sobre ambulâncias". O Duarte Lima, porém, estava imparável, indignado com os ataques de Spínola ao MFA, e não se calava, nos insultos que ia proferindo, em crescendo. O general, a alguns metros dele, fervia de raiva, potenciada pela impotência que Spínola confessava no seu discurso. Os seus escassos acompanhantes remoíam em silêncio.

Quando tudo terminou, quando Spínola anunciou a sua demissão, todos nos levantámos, ainda um pouco aturdidos com o início de uma nova fase da Revolução que o seu gesto prenunciava. O tal general, lívido, passou pelo Duarte Lima e, num assomo de autoridade, lançou-lhe: "Você devia ter vergonha sobre o que disse". A compostura militar impôs-se e o Duarte Lima não reagiu. Ou melhor: deixou sair da sala o superior e comentou para nós: "Estive para o mandar à ....". Mas não mandou. E ainda bem.

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