quinta-feira, 14 de outubro de 2010

Acerca do prémio de teoria económica em memória de Alfred Nobel atribuído em 2010 pelo Banco da Suécia

Imagine um mundo devastado por uma praga e suponha que o Prémio Nobel de Medicina é concedido a investigadores cuja carreira foi baseada na suposição de que pragas são impossíveis. O mundo teria sido ultrajado. É precisamente assim que nos deveríamos sentir com o anúncio de ontem daqueles que receberam o Prémio Nobel 2010.
Os três economistas académicos, aos quais foi concedido o Prémio Nobel 2010 de Ciências Económicas, são sem dúvida tecnicamente exímios, inovativos no modo como constroem os seus modelos e, de facto, pessoas requintadas. Mas antes de lhes darmos um abraço e aderirmos às suas celebrações, deixem-nos dar uma olhadela à descrição oficial das suas contribuições para a sociedade. Foi assim que o Financial Times (11/Outubro/2010) apresentou o acervo dos trabalhos dos três homens: Peter Diamond, Dale Mortenson e Chris Pissarides:

[Eles] deram contribuições fundamentais para o entendimento de como a oferta e a procura são atingidas quando há custos de transacção ou de investigação envolvidos. ... As teorias "busca e atinge" ("search and matching") dos laureados mostram que não é suficiente ter compradores e vendedores que possam em princípio concordar sobre um preço; aqueles compradores e vendedores também devem encontrar um com o outro e decidir efectuar uma transacção ao invés de procurar uma combinação melhor. As transacções não acontecem por si próprias mas sim após um processo de busca que pode ser custoso e consumidor de tempo, descobriu a investigação. Isto torna possível que os resultados dos mercados atendam a oferta e procura bem, ineficientemente ou não atendam de todo. As percepções dos laureados foram aplicadas, por eles próprios e muitos outros investigadores, a um vasto conjunto de mercados, incluindo o mercado habitacional, o de produtos financeiros e mesmo o de escolhas de casamento. Mas a aplicação mais importante foram mercados de trabalho. Fricções no emparelhamento de trabalhadores e empregos significam que os mercados de trabalho podem ser ineficientes. O mercado pode, em particular, produzir resultados nos quais o desemprego persiste mesmo que haja trabalhadores que estariam dispostos a trabalhar pelo salário que os patrões estariam dispostos a pagar.

E agora a tradução. Os três laureados passaram a maior parte das suas carreiras a estudar o que acontece quando há empregos mas os trabalhadores que os querem não podem encontrar os patrões que gostariam de empregá-los; e vice-versa. Eles narraram casos, utilizando elegantes descrições matemáticas, de como um patrão Jack teria desejado contratar a trabalhadora Jill se ele tivesse sabido que Jill é, de facto, bastante produtiva mas não a contratou porque a pobre Jill não conseguiu convencê-lo de que é – pela razão de que está tão desesperada que trabalharia por um salário tão baixo que "assinalaria" a Jack que, por estar naquele desespero, ela possivelmente não poderia ser tão produtiva como trabalhadora tal como afirma! Finalmente, um deles (Mortenson) mostra os seus dentes mostrando que trabalhadores podem racionalmente optar por se tornarem desempregados como uma "estratégia de investimento": isto é, abandonarem um mau emprego em busca de um melhor (uma actividade que pode necessitar ser um esforço a tempo inteiro).
É interessante que estes três refinados economistas matemáticos tenham uma coisa em comum, além do seu trabalho sobre mercados de trabalho: na sua volumosa produção teórica sobre desemprego e assuntos afins, não há nem a mais mínima alusão ou menção a uma crise económica, a qual pode disparar o desemprego em todos os sectores e para todos os tipos de trabalhadores. Nem uma!
Daí, o paralelo da praga acima. Em 2008, pela primeira vez desde 1929, o capitalismo entrou num paroxismo em grande escala. Milhões de pessoas perderam os seus lares, ainda mais milhões perderam os seus empregos, casas permanecem por vender e trabalhadores sobrevivem na terra de ninguém do desemprego. Num momento em que mesmo o Sr. Bernanke está preocupado acerca do impacto generalizado e da dinâmica inexorável do desemprego, desde a indústria da construção ao sector da alta tecnologia, estes três economistas são premiados pelo trabalho sobre desemprego baseado em modelos nos quais o desemprego em massa é simplesmente impossível.
Como pode ser isto? Minha simples afirmação é esta: A teoria económica da corrente principal é o mais peculiar de todos os fracassos teóricos. Ao contrário da astrologia ou da frenologia, a teoria económica torna-se mais alternativamente poderosa quanto maior a sua incapacidade para nos informar sobre o capitalismo realmente existente. Como esta nota não é o lugar próprio para explicar o mecanismo evolutivo preciso pelo qual os fracassos da teoria económica alimentam o seu poder social sempre em expansão, basta dizer, de forma pertinente, que a teoria económica retira o seu imenso poder narrativo da:

a) Sua demonstrável ambição de explicar todo fenómeno social (incluindo resultados fora do mercado) com a ajuda de modelos que estão enraizados numa defesa ética de toda actividade capitalista, se bem que negando estarem ali enraizados; e
b) Um processo audaciosamente circular de reforço mútuo:   fé nas suas suposições constitutivas, as quais economistas manipulam continuamente de modo a esconder as implicações dos seus modelos (e, muitas vezes, a sua incoerência lógica) – eles regem-se sem compromissos com a lógica do capitalismo realmente existente. Ao tornarem-se irrelevantes para o capitalismo, eles descobrem-se premiados com poder institucional (e Prémios Nobel), o que ajuda (um cada vez mais invisível) capitalismo a manter um embargo estrito a quaisquer investigações sérias do seu próprio efeito sobre pessoas e sociedades reais.

Neste ponto, sinto uma forte premência de enfatizar algo que a Monthly Review já sabe: se este mecanismo de retro-alimentação (entre os fracassos dos economistas, a aptidão do capitalismo e o poder de divagação dos economistas) permanecer opaco e não examinado pelos dissidentes progressistas, o capitalismo e a teoria económica da corrente principal continuarão a reforçar a dominação um do outro na medida em que:

a) A teoria económica permanece inocente da lógica do capitalismo, graças à cortesia de puras formas matemáticas (como aquelas que os laureados do Nobel 2010 produziram), e
b) A lógica do capitalismo contemporâneo difunde-se mais depressa e mais profundamente quando a teoria económica ajuda a que permaneça invisível.

Muito possivelmente, nunca antes a história intelectual moldou um triunfo ideológico desta magnitude a partir de uma sequência de lamentáveis, mas poderosamente motivados, fracassos teóricos.

por Yanis Varoufakis - Professor de Teoria Económica e Director do Departamento de Economia Política na Faculdade de Ciências Económicas da Universidade de Atenas; autor de The Global Minotaur: The True Origins of the Financial Crisis and the Future of the World Economy (a publicar); Modern Political Economics: Making Sense of the Post-2008 World (com J. Halevi e N. Theocarakis); Game Theory: A Critical Text ; Foundations of Economics: A Beginner's Companion ; e Rational Conflict .
O original encontra-se em http://mrzine.monthlyreview.org/2010/varoufakis121010.html . Tradução de JF.

Sem comentários: