segunda-feira, 5 de julho de 2010

Subida de juros até 2011 “não terá um grande significado”

Em tempos de crise, há que fazer escolhas e, para o presidente da APB, os bancos não poderiam continuar a financiar grandes projectos, como o TGV, e emprestar dinheiro às famílias e às empresas. António de Sousa afirma que, ao nível dos particulares, não há um aumento do crédito malparado como seria de esperar face à actual conjuntura negativa. Sobre a crise de liquidez, diz que o BCE pouco mais pode fazer, e que o problema só será resolvido quando terminar a desconfiança face às dívidas soberanas.
Verifica-se uma tendência para dar a cada país margem para definir o calendário da implementação das novas regras de aumento dos fundos próprios dos bancos, decorrentes de Basileia 3. Como vê esta situação?
Acho que seria benéfico, porque uma das nossas questões [na reunião que decorreu em Bruxelas] tinha precisamente a ver com o faseamento das várias medidas para os diversos países e para as diversas regiões, ou seja, em termos da União Europeia e de outros blocos económicos.
No caso de Portugal, quais seria as etapas ideais e o calendário?
Uma das questões que foi mais criticada tem a ver com a pró-ciclicidade das medidas. Ou seja, as medidas, quando são tomadas, acentuam o ciclo. Se a situação está má, as medidas tornam-na rapidamente ainda pior. E uma boa parte destas medidas vão obrigar a aumentos de capital, a situações de diminuição do endividamento dos bancos -- embora isso não afecte muito os bancos portugueses -- e a mudanças nos rácios de liquidez. Aqui já poderá haver algum impacto. Porque um rácio pode ser muito bem concebido, conceptualmente estamos todos de acordo, mas depois o número que é posto no rácio pode ser altamente difícil de atingir.
Concretamente em relação ao timing, o problema é que estamos neste momento na parte baixa do ciclo. Assim, ao fazer novas imposições, novos acrescentos em termos de capital, obviamente que torna a situação ainda mais difícil. Mais uma vez temos uma situação de pró-ciclicidade. Aquilo que quisemos evitar com Basileia II poderia estar a acontecer com Basileia III.
Acha que não deve ser imposto neste momento um aumento de capitais próprios?
O reforço de capitais é necessário, a prazo. O que aconteceu foi que, nesta crise financeira, houve um conjunto de produtos, que acabaram por ser chamados de activos tóxicos que estiveram muito relacionados com o subprime, ligado a empréstimos concedidos sem as garantias necessárias. Eu acho que a regulamentação sobre os produtos e sobre essas situações extremas de concessão de crédito pode e deve prosseguir. Aliás, tudo o que tem a ver com regulação de produtos, como os Credit Default Swap (CDS) ou o short-selling, é urgente e necessário e pode começar já porque não afecta os bancos comerciais normais, relacionados com a economia real e têm o problema da pró-ciclicidade.
Se é verdade que o sistema financeiro português não teve a ver com a origem da crise, parece ter havido no passado uma concessão desenfreada de crédito, com facilitismo, e isso terá contribuído para uma má imagem do sector.
Os bancos são sempre mal vistos. Se hoje se diz que emprestaram demais, durante anos afirmou-se que deviam emprestar mais, quando realmente, em certos casos, já estavam a conceder demasiados empréstimos. E a maior parte do crédito ao consumo não é emprestado pelos bancos.
A promoção, a publicidade, era em larga escala...
Sim, mas o crédito em consumo em Portugal é muito pequeno, quando comparado com outros países. E isso é um dos aspectos positivos da nossa banca. Cerca de 80 por cento do crédito concedido está ligado a empréstimo para compra de habitação. Depois há um tipo de crédito ao consumo, mas com um activo, que é o que é utilizado para compra de automóveis, que vale entre cinco a sete por cento do total. Isso faz com que o crédito ao consumo puro ronde os dez por cento. E a maior parte do crédito ao consumo veio das sociedades financeiras de aquisição a crédito, não dos bancos. Por isso, quando se diz que o crédito malparado das famílias não tem aumentado muito substancialmente, isso tem precisamente a ver com o facto do crédito ao consumo ser bastante pequeno e, no caso da habitação, das taxas de juro terem descido de tal maneira que a taxa de esforço diminuiu. Não se nota um aumento do crédito malparado como seria de esperar com este ciclo tão negativo e taxa de desemprego tão grande.
A banca portuguesa resistiu bem até agora. Mas acha que está em condições de resistir em 2011 se a crise liquidez persistir?
Em termos de capitais sim, mas o problema é de liquidez. Não é possível um sistema financeiro aguentar anos a fio sem haver um mercado interbancário, que é essencial para o financiamento dos bancos. Nomeadamente porque, e isso é particularmente verdade em Portugal, continuamos a ter um défice de transacções correntes muito elevado. Esse défice tem de ser financiado e quem o faz é o exterior, através dos bancos. Ora, se os bancos não conseguem financiamento, obviamente que se cria um problema substancial. E são poucas as empresas que conseguem ir financiar-se directamente ao mercado internacional, além de que mesmo essas estão a sentir dificuldades. Isto para dizer que não há sequer uma experiência histórica, nem em Portugal nem no estrangeiro, de o mercado interbancário estar fechado durante mais de um ano. A situação começou a tornar-se complicada em Portugal a partir de Fevereiro, quando começou a grande discussão sobre a dívida soberana. E quando a dívida soberana tem problemas, automaticamente, se não se empresta ao Estado, ainda menos se empresta às empresas desse mesmo Estado, a menos que tenham uma grande parcela da sua actividade no estrangeiro.
Quando é que acha que este problema se irá resolver?
Não faço a mínima ideia.
Como é que o BCE pode melhorar ainda mais o fornecimento de liquidez?
Por agora, não há que melhorar ainda mais. O sistema está a funcionar bem, e pode continuar a funcionar assim. Na prática, o que o BCE está a fazer é financiar os bancos com base no colateral que eles têm, ligado aos activos de boa qualidade. Obviamente que, como já aconteceu em 2008, e que se tem falado ao nível do BCE, há a eventualidade de voltar aos empréstimos mais longos, além dos três meses, que é mais seguro para os bancos, dando mais estabilidade. De resto não há muito mais que possa fazer, excepto medidas como as que foram utilizadas nos EUA e Inglaterra e que implicam uma alteração substancial da política monetária, com a concessão directa de empréstimos a empresas. Isso nunca foi feito na zona euro.
Como é que vê então as diferenças estratégias de regulação a nível mundial?
Posso dizer-lhe o que é que eu gostaria que acontecesse, e que não é o que está a acontecer na realidade. Obviamente que era muito melhor se fossem sistemas idênticos para os vários agentes financeiros mais importantes: EUA, Europa e a parte asiática, que hoje em dia não é despiciente. Muito provavelmente não se irá conseguir uma igualdade entre as todas as reformas de regulação, mas pelo menos convém que haja uma concertação, de forma que o problema da “concorrência desleal” não seja demasiado afectado.
Acha que isso vai acontecer ou espera que isso vá acontecer?
Eu gostaria que viesse a acontecer. Tenho algumas dúvidas que aconteça num nível adequado. Provavelmente irá haver algumas distorções, o que não vai ser bom para ninguém. Infelizmente, vejo um retraimento da parte dos EUA, que ao início era muito favorável à regulação.
Disse que o crédito malparado das famílias não tinha subido assim tanto. Não teme que isso se altere quando os juros subirem? Porque tem havido uma folga...
Claramente. A descida das taxas de juro trouxe uma folga para as famílias bastante grande. Mas repare que a subida das taxas de juro, que é inevitável a prazo, vai ser muito moderada. Infelizmente, a situação económica não está para grandes subidas das taxas de juro. Era bom que a taxa de juro pudesse subir rapidamente porque isso significaria que se estava a verificar uma recuperação económica muito grande. Enquanto a descida das taxas de juro foi de quatro e tal por cento, quando se fala de aumento das taxas de juro, mesmo para 2011, estamos a falar de algo da ordem de 0,25 por cento, não devendo chegar ao meio por cento. Mesmo que haja esse aumento, e estou a falar de um prazo de um ano e meio, não terá um grande significado.
O crédito mal parado está a subir nas empresas?
Está a subir mais do que nas famílias e diria que considerando a recessão que existiu o ano passado que está a subir moderadamente. E diria que era expectável que o mal parado tivesse subido mais do que aquilo que se verificou. E não subiu por duas razões: as taxas de juro estão mais baixas e criaram uma almofada para esta situação. E, por outro lado, muitas empresas criaram uma política de redução de stocks que lhes permitiu libertar dinheiro para a sua actividade corrente. O crédito mal parado subiu, mas comparando com outros países europeus, subiu bastante menos. Apesar de as nossas empresas estarem muito endividadas. Mas tiveram uma reacção rápida.
Os bancos admitem abertamente que têm problemas de liquidez e que estão a dar menos crédito à economia, que é uma das suas principais missões...
O crédito ainda está a subir. Está é a subir cada vez menos.
Está a subir?
Sim, está é a abrandar. Há aqui duas coisas. Há o crédito que é concedido em um mês e há a totalidade do crédito. O saldo do crédito continua a subir, tem é vindo a abrandar nestes últimos meses.
Nesse caso há o problema de, se o crédito continuar a subir, o endividamento não descer...
Penso claramente que o endividamento não pode continuar a subir, porque temos um problema de restrição internacional, de quem é que nos empresta o dinheiro. E isso é um problema que se coloca à República, aos bancos e às empresas.
Mas como é que se articula essa necessidade de o crédito não poder continuar a subir com a animação da economia? O que é os bancos vão fazer?
Isso depende da estratégia de cada um dos bancos. Se o cenário se mantiver diria aquilo que os bancos têm dito, e que passa por cortar nos grandes empréstimos. Preferem fazer o crédito às famílias e às PME, mais de retalho e com fidelização de clientes. Foi aí que surgiram as questões ligadas ao financiamento dos grandes projectos.
Acha que há condições para a banca financiar o TGV?
Vai ter dificuldade. Para haver dinheiro para os grandes empréstimos os bancos dificilmente poderiam continuar a operar no retalho. O Ministério das Finanças conhece este assunto muito bem.
Quais os principais desafios para os bancos?
Os relacionados com a liquidez, saber quando desaparece esta restrição de liquidez. O que é imprevisível. Embora conjuntural não se sabe quanto tempo vai demorar. E outra, estrutural, que tem que ver com a rentabilidade dos bancos. A rentabilidade dos bancos está neste momento muito afectada e os resultados dos bancos em Portugal atingiram em Portugal um valor, em relação aos capitais próprios, da ordem de um e dois por cento, o que é baixíssimo. Com rentabilidades deste género vão ter problemas em termos internacionais graves. A rentabilidade da actividade que é considerada aceitável em termos internacionais anda à volta de 12 e 15 por cento. Os bancos tem consciência disso e hoje uma boa parte da rentabilidade vem das participações financeiras que têm e de algumas actividades que têm em termos internacionais. Quando olhamos para a rentabilidade consolidada, por comparação com a da actividade doméstica, nota-se logo. Hoje os grandes bancos nacionais tem posições em empresas não financeiras, nos serviços, e em bancos lá fora, e quando se retira o contributo destas participações os números diminuem para um quinto, um sexto do que são os números da actividade da banca.
O problema da rentabilidade está relacionado sobretudo com o financiamento, que está muito caro, e, em termos marginais, cada vez que um banco empresta dinheiro está a perder dinheiro.
Como assim?
Um banco está a financiar-se a cinco por cento e a emprestar a dois. No caso do crédito à habitação está a emprestar a 1,8 por cento (que é média). Nos empréstimos novos já não é assim, pois os bancos estão a levantar os spreads para que o prejuízo não seja tão grande.
Outro problema tem que ver com a capacidade para manter os custos baixos, o que não é muito fácil. Pois já antes da crise os bancos eram considerados dos mais eficientes em termos europeus. Não há muita capacidade para ganhar eficiência adicional. Isto só tem solução quando a economia começar a crescer.
A restrição de liquidez será menor quando forem conhecidos os testes de stress?
Enquanto houver uma situação de dúvida sobre a dívida soberana é muito difícil que melhore a situação dos bancos. O que é tradicional é que os ratings das repúblicas seja superior pelo menos um ponto ao das instituições desses países. Enquanto não houver uma superação da situação em relação ao país é muito difícil que melhore a situação dos bancos. Os testes de stress podem dar mais confiança no sistema, mas duvido que os mercados abram só por causa disso.
Mas um banco pode ser sólido e entrar em colapso por falta de liquidez?
Pode. Essa é a questão.
Como é que se ganha a confiança dos mercados?
Tem que se dar a noção ao mercado de que o pagamento da divida é real. Temos que ter um défice mais pequeno a prazo, a a divida externa não pode continuar a aumentar e deve haver um certo equilíbrio da balança. O problema é que o tempo de reacção dos mercados não é de um dia para o outro. Uma coisa é anunciar as medidas, outra coisa é implementá-las e depois avaliar a sua eficácia. E neste momento ainda estamos no anúncio das medidas.
Está afastado o risco de intervenção do FMI?
Neste momento sim. Só haverá risco se acontecer algum problema grande em Espanha.
Acha que a carga fiscal em Portugal é demasiado forte para a capacidade que os portugueses têm de gerar riqueza?
Penso que sim. A outra forma de reduzir o défice de forma estrutural é reduzir despesa. Mas a curto prazo, como já defendi, a única forma é subir impostos. Não há outra forma de o fazer. Mas soluções para resolver problemas conjunturais, também devem ser conjunturais. Os impostos devem ser extraordinários, como se fez em 1983 e 1984, e não permanentes.
O Governo tinha como prioridade, quando tomou posse, a reprivatização do BPN. Mas isso ainda não se fez. O que aconteceu?
A situação económica. Neste momento não me parece que seja muito fácil fazê-lo. Não tem havido, em Portugal e na Europa, apetência por adquirir activos bancários e por isso percebo que não se tenha avançado mais depressa, pois não vai ser fácil encontrar comprador.
Uma das bandeiras de Pedro Passos Coelho, para se distinguir do PS, é a privatização da CGD. Concorda?
Pessoalmente defendo para já, e que já antes defendia, a privatização de alguns negócios da CGD, nomeadamente dos seguros. Aliás, [foi isso que] defendi quando estava à frente da CGD, quando foi adquirida a Mundial Confiança.
Parcialmente?
Através da dispersão parcialmente o capital em bolsa. Até porque não existe hoje nenhuma seguradora cotada em bolsa em Portugal.
A totalidade do capital?
Inicialmente apenas uma parte. Diria que uma parte sim, mas mais do que uma parte tenho dúvidas. E não necessita de ser a maioria do capital, nem a totalidade.
E em relação ao banco CGD propriamente dito?
Digo o mesmo que disse quando estava na CGD. Em princípio não me faz nenhuma confusão que a CGD seja pelo, menos parcialmente, privatizada, pois é útil para lhe dar uma lógica de mercado. Mas não me parece que seja oportuno, nomeadamente enquanto na maioria dos países europeus existir uma presença muito significativamente do Estado no sistema bancário. Portanto acho que Portugal também deve ter uma presença no sistema bancário. Não vai agora privatizar a CGD e nacionalizar outro banco ao lado.
E não teme que privatizar parcialmente seja o primeiro passo para privatizar totalmente?
Não. Sinceramente não vejo nenhuma razão para isso. Mas pessoalmente acho que uma das razões para privatizar algumas instituições é para lhes dar uma lógica de mercado mais claro, e dar-lhes maior transparência. Aliás, quando estive na CGD a empresa começou a cumprir com um conjunto de obrigações junto da CMVM, que até aí não prestava. Quando se diz que a CGD não está na bolsa, é só parte da verdade porque a partir do momento em que tem obrigações cotadas na bolsa tem que seguir as normas do mercado.
Então qual é o interesse da privatização?
Ser o mais transparente possível, mas neste momento não é oportuno levantar a questão.
Acha que há espaço para concentração entre bancos portugueses?
Entre bancos pequenos claramente. E eventualmente entre bancos pequenos e bancos grandes, ainda recentemente o Banif comprou o Banco Mais. Agora concentrações entre bancos grandes parece-me mais difícil, dadas as estruturas accionistas existente.
Concorda com o levantamento do sigilo bancário?
O sigilo bancário já é possível em Portugal para uma série de coisas. E até se diz que o sigilo bancário continua a criar problemas em termos fiscais. A lei actual é perfeitamente adequada em que, em qualquer caso, se possa levantar o sigilo bancário.
Partilha da opinião dos que criticam o papel das agências de rating na crise?
Só há três (Fitch, Moody’s, Standard & Poor’s) e era útil existirem mais agências de rating e existirem mais opiniões.
Mas há mais, só que ninguém as ouve.
As outras são tão pequenas que não têm expressão. Na prática só há aquelas três, o que é pouco pois estamos a falar a nível mundial. E isto reflecte um mercado onde predomina uma concentração excessiva. E depois todas elas são norte-americanas, embora tenham presença na Europa, com tendência para usar métodos muito orientados pela filosofia anglo-saxónica. A Fitch é um pouco diferente, mas acaba por ir pela norma do mercado. E, depois, penso que deviam claramente orientar-se apenas para serem agências de rating, e não terem nenhum conflito de interesses e não entrarem, como estava a acontecer antes da crise, pelas áreas da consultoria. Dito isto era desejável que existissem mais agências e mais pluralidade.
E não defende que o sector deve ter regulação?
O problema é saber como é que se regula uma agência de rating. Para mim é uma ideia muito interessante mas ainda estou para ver qual é a eficácia dessa regulação PUBLICO.PT

Sem comentários: