Um dos elementos estranhos desta democracia é a deficiente qualidade do discurso político. Pessoas sérias, honestas e inteligentes podem dizer as maiores aleivosias e os disparates mais boçais ao formular uma posição política. Nessa qualidade é permitido violar a lógica, faltar à verdade, defender o impossível, tudo com naturalidade. É verdade que o nível actual está muito acima do que já foi, na podridão do Liberalismo, caos da Primeira República ou cerimonial da ditadura. Vivemos num sistema estável e digno e ouvem-se muitas intervenções sérias. Apesar disso, existe uma degradação de discurso que a democracia não consegue eliminar. Quando se ouve um político, utilizam-se logo critérios frouxos. Aí é permitido o bluff, insulto, exagero, aldrabice que ninguém toma a sério, por ser "combate político". Ora, precisamente por isso, a exigência de rigor e seriedade devia ser maior, não menor. As opções ideológicas são sempre respeitáveis, mas há enorme distância entre opinião pessoal e asneira indefensável, que é sempre de combater. Como na pantomima clássica, existem posições pré-definidas. Os apoiantes do Governo são obrigados a achar que ele nunca falha e tem sempre razão total, enquanto a oposição é suposta recusar-lhe qualquer sucesso, boa intenção ou ínfima capacidade. O PS ainda está paralisado na defesa intransigente do consulado Sócrates, negando a esmagadora evidência de erros, abusos e desgraças. Os extremos têm de ser esdrúxulos e irresponsáveis, protestando ruidosamente contra as medidas mais indispensáveis. Se alguém se afastar milimetricamente da cartilha, declara-se logo um "caso político", com o desvio escalpelizado à exaustão pela imprensa. A crise recente aumentou a parada e tornou mais graves os dislates. Na emergência nacional esta falta de substância é particularmente nociva, mas a tolice permanece impávida e o jogo segue imperturbável como se não estivesse em causa o futuro de todos. Cada semana novo caso alimenta a voragem, em geral sem relação com a realidade económica e o interesse do país. Surge, cresce, brama imparável, para se desvanecer sem rasto. A última vítima de eleição tem sido o ministro da Economia. Inicialmente louvado por competência académica, vem zurzido a cada passo por falta de peso político, que nunca poderia ter pela própria carreira que lhe dá valor. Atacando-o por algo óbvio e inevitável, os críticos só complicam tarefas nacionais decisivas, mas a máscara política a isso obriga. Outra controvérsia recente entre duas das melhores e mais poderosas personalidades nacionais mostra a que extremos chega a vacuidade. A história da última crise política ainda está por fazer. Faltam os testemunhos dos principais envolvidos, como José Sócrates e Teixeira dos Santos. No prefácio da colectânea Roteiros VI, o Presidente da República foi o primeiro a avançar, apresentando uma sóbria e ponderada avaliação do período, mas com palavras que se revelaram incendiárias: "O anúncio do 'PEC IV' apanhou-me de surpresa. O Primeiro-Ministro não me deu conhecimento prévio do programa. Tratou-se de uma falta de lealdade institucional que ficará registada na história da nossa democracia." Estas palavras geraram escândalo de morte de homem. Mas o árbitro do regime, Professor Rebelo de Sousa, leu, não estas, mas outras palavras que lá não estão. Segundo ele, o Presidente sofreu o que considera "o acontecimento mais grave dos últimos 30 anos". Isso é pura ficção. Nenhuma pessoa sensata tomaria tal pormenor como o pior do regime; e seria rematada tolice demitir por isso o Governo, como enfaticamente sugeriu o comentador. É evidente que Sócrates conduziu o PEC dessa forma para provocar aquilo mesmo que acabou por suceder, a queda do Executivo, apresentando-se depois a eleições como vítima dos que se opunham às medidas indispensáveis. Será que Marcelo, superiormente inteligente, não entende o disparate que disse? Claro que sim. Então porque o fez? Simples discurso político, carambolas que dispensam lógica e bom senso. por JOÃO CÉSAR DAS NEVES - DN
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