Francisco Seixas da Costa
As aventuras daquele primo da minha mãe corriam na família. Nascido em Trás-os-Montes, o Antoninho, como era conhecido, viera cedo para Lisboa e, por anos, perdera-se na noite da capital, até que um oportuno casamento o levou a "assentar". Era essa, pelo menos, a versão simplificada do seu percurso que nos era transmitida. Conhecia-o mal. Para mim, era apenas uma figura muito simpática, sorridente e divertida, que eu cruzava por Bornes, quando em férias, em agradáveis noites de cavaqueira, às vezes à lareira, em casa do meu avô. Fui crescendo com a sua imagem cordial, de alguém que vivia "lá em baixo, em Lisboa", desenhada por esses episódios esparsos da sua vida que se mitificaram, em caricatura gloriosa, na minha jovem imaginação. Terá sido por esta altura do ano, em 1965, que, a contas com apenas uma cadeira que não completara no meu 7º ano do liceu, os meus pais me deixaram vir passar a Lisboa umas belas três semanas de férias, em casa de familiares. Ainda hoje me pergunto a razão deste "prémio"... Num sábado dessas férias, o Antoninho ofereceu-se para me ciceronear por Lisboa. Foi um dia que nunca mais esqueci. Começámos pelas ruas da Baixa, onde ele me mostrou lojas e locais menos comuns, chamando-me a atenção para pormenores que escapam ao comum dos visitantes - e mesmo dos lisboetas. O Antoninho não era dado à coisa cultural, não havia livrarias ou objetos dessa natureza, era uma cidade mais típica, lida e selecionada por quem a calcorreara muito, com uma curiosidade de estrangeiro, neste caso de alguém que, vindo da província, olhou as coisas com outros olhos, talvez mais deslumbrados e seguramente mais alerta. Pelo Tejo, o Antoninho levou-me a almoçar ao "Ginjal", a Cacilhas. De regresso a Lisboa, apresentou-me ao "British Bar", no Cais do Sodré. Passeámos depois pela Mouraria e por alguns dos seus lugares específicos. Ao final da tarde, ali no Martim Moniz, levou-me à abertura do "Bolero", apresentou-me ao Pinto e anunciou-me a existência do pianista cego que, anos mais tarde, eu muito iria escutar por lá, em longas e regadas madrugadas. Uma bilharada no primeiro andar do "Martinho" antecedeu um jantar no "Chico Carreira" e um copo final no "Galo". Só faltaram revista e fado, para cumprir a canção. Já perto da meia-noite, deixei o Antoninho à porta da casa onde ele vivia, perto da Academia das Ciências. Aguardavam-no, à janela, com uma ansiedade em que se pressentia o temor de uma recaída na boa-vida, a mulher e a filha, com cara de poucos amigos. Já cúmplices, haviamos combinado uma "narrativa soft" do percurso introdutório à cidade que ele proporcionara aos meus 17 fascinados anos. O Antoninho desapareceu desta vida, já há muito. No sábado, bebi um gin tónico, no "British", à sua memória, à memória de quem, nesse mês de outubro de 1965, me deu a minha primeira grande lição de Lisboa. |
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