Conheço-o há muitos anos. Mas vemo-nos muito pouco. Não posso sequer dizer que sejamos amigos, somos apenas conhecidos, embora com forte cordialidade no relacionamento. Confesso que nunca o levei muito a sério e ele deve tê-lo pressentido ao longo dos tempos, pelo que mantém comigo uma atitude que tem por detrás uma difusa tensão. É uma pessoa culta, bem preparada, informada, com alguma graça, de quem, potencialmente, se espera alguma obra. E da boa. Quando, por acidente, nos encontramos, quase sempre com anos de intervalo, temo imenso perguntar-lhe como anda a sua vida. Porquê? Porque nunca está "em nada", está sempre a caminho de ir fazer alguma coisa. Fala-me de planos, de projetos, de ideias. Nunca de nada feito, concretizado. Não sei bem como e de que vive. Eu receio inquirir, com medo de o poder ofender ou afetar a sua privacidade. Curiosamente, ele, sem limitações, como num "preemptive strike", refere-se, "de cima", à minha própria vida profissional ("então li que agora andas pelas empresas? Olha p'ró que te havia de dar! Largaste as estranjas e as viagenzecas pelos Brasis?). Curiosamente, tem sempre o tempo muito ocupado. Quando nos cruzamos, numa esquina ou num café, nunca vem sem ser de passo apressado, um pouco inclinado para a frente, numa espécie de coreografia de movimento. Transmite quase a ideia de estar a perder o seu tempo, que lhe é precioso, conosco. De papelada na mão, tem uma agenda apertada ("saí agora de um almoço com Sicrano, em que estivémos a explorar uma ideia bem gira. Um destes dias, conto-te"). Refere outros encontros para "logo" ou "amanhã", bem como viagens futuras ("tenho de ir ao Porto para a semana, para estar com Fulano") ou passadas ("estive com Beltrano em Évora, em abril, para tratar de um projeto que estamos a preparar. Sou capaz de ter de ir à Islândia antes do Verão. Conheces alguém por lá?"). Deixa coisas no ar ("tens visto aquele tipo gordo, da Guarda, que era tu amigo? Preciso de falar com ele, para um estudo que estou a preparar") ou em que podemos vir a ser-lhe útil ("se calhar, vamos ter que falar um destes dias sobre uma coisa ligada lá às Necessidades. Dás-te bem como o teu colega em S. Marino?"). Mas logo deixa cair o assunto, que fica invariavelmente para "mais tarde". Quando lhe lembro, quase só para alimentar conversa, uma ideia que em tempos me tinha dito que andava "a trabalhar", na última vez em que faláramos, diz-me, com o despreendimento de quem tem uma "carteira" de tarefas incompatível com essa coisa que se revelou menor: "É pá! Larguei essa cena há muito! Não dava!". E passa à frente, rumo ao futuro que sempre lhe alimentou o presente. Uma coisa é certa: quase todos os nomes que cita, gente com quem falou ou vai falar, são pessoas credenciadas. Cultiva, assim, junto dos amigos, uma espécie de currículo feito dos conhecimentos que alega ter, e que, aliás, nem sequer duvidamos que de facto tenha. O que nos poderia conduzir, no fim da conversa, a ficarmos com a noção de que ele está, de facto, "a colaborar" com esses nomes mais ou menos sonantes, podendo ficar nós na expectativa de o ver associado ao respetivo trabalho. Só que, lá no fundo, todos os que o conhecemos, em especial essas pessoas, sabemos, de ciência segura, que tal acabará por nunca acontecer. Mas ele, ao contrário de nós, não desiste: continuará a "trabalhar numas ideias". Será feliz? |
quinta-feira, 22 de maio de 2014
duas ou três coisas
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