Hoje sabemos melhor o que foi o chamado "28 de Setembro" de 1974 - um equívoco momento de confronto entre sectores ultra-conservadores, apoiantes de um movimento para dar plenos poderes ao general Spínola, e forças políticas da Esquerda, que habilmente aproveitaram o ensejo para afastar o polémico presidente da República, que, no 25 de Abril, haviam sido forçadas a aceitar e que se tornava progressivamente mais incómodo. É que, à época, assistia-se a um crescente ambiente anti-25 de Abril, alimentado pelo próprio Spínola, que estava a colocar a esquerda e o Movimento das Forças Armadas à beira de um ataque de nervos.
Nessa noite, eu tinha sido destacado para uma determinada tarefa, juntamente com o António Reis - o líder dos milicianos da Escola Prática de Administração Militar. Íamos sob o comando de um alferes "do quadro" e levávamos connosco uma "praça", um soldado, o Moura. O Moura tinha na mão uma intimidante metralhadora G3. Estávamos parados, junto ao meu carro, nas "Avenidas Novas", a altas horas da noite. Por razões que demorariam a explicar, a tensão era então muito grande, porque a noite do 28 de Setembro foi muito longa e complexa.
De súbito, uma surpresa: começa a vislumbrar-se, à distância, vinda do alto da rua, uma figura de estatura baixa, estranhamente com as mãos no ar, como se estivesse a render-se. Naquele enquadramento noturno, sem vivalma em roda, a cena era patética e infundia uma súbita insegurança.
O soldado Moura começou a demonstrar uma perturbação agitada, com jeitos de querer afirmar a capacidade operacional de que a sua condição de barman da messe da EPAM era "sólida" garantia: num instante, põe a patilha da G-3 na posição de disparo, leva a arma ao ombro e, num derradeiro e precioso segundo, é travado pelo alferes do quadro com um "está quieto!" e o afastar a arma do alvo.
Aparentemente sem se aperceber do nosso nervosismo e do risco de vida que estava a correr, a personagem continuava lentamente a aproximar-se, agora já se lhe ouvindo coisas, numa voz procuradamente surda, para não alertar a vizinhança, tais como "Sou eu! O Manel". Lentamente, pudemos identificar quem lá vinha. Era o Manuel Serra, o sempiterno revolucionário dos golpes da Sé e de Beja, figura que, meses depois, titularia uma célebre cisão de esquerda no Partido Socialista, com a criação da Frente Socialista Popular.
- "Então, rapazes, há novidade? Vi-vos por aqui e vinha perguntar se necessitam de alguma coisa. Temos ali duas viaturas com pessoal, armas e granadas, para o que der e vier. Não precisam mesmo de nada? Está tudo em ordem?".
Ficou a ideia que o Manel e os seus amigos andavam nessa noite pela cidade, numa espécie de piquete do ACP, para "avarias" de outra natureza. Demos os abraços da praxe e presumo que devemos ter esclarecido que "está tudo sob controlo". No fundo, sem lho revelarmos, estávamos imensamente aliviados por se ter conseguido travar a precipitação quase trágica do Moura, o qual talvez nunca tenha entendido bem quem era aquela alma penada e meio careca, saída do escuro da rua, afinal amigalhaço dos seus superiores, a quem estivera prestes a dar um tiro.
E lá foi o Manel de volta, pela noite, à busca da revolução que sempre lhe consumiu os dias.
Dias que hoje terminaram, aos 78 anos, em Lisboa. Adeus, Manel!
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