sexta-feira, 25 de outubro de 2013

O GÖTTERDÄMMERUNGZINHO

JPP

 

Entre os produtos do romantismo alemão que circulam na cultura popular está a ideia do Götterdämmerung, título de uma ópera de Wagner, mas, mais do que isso, uma vasta encenação trágica do fim, da decadência, da queda. Não de uma queda qualquer, mas de um fim dos tempos, em que tudo desaba e se desintegra, corpos, cabeças, nações, impérios. No final da ópera tudo é destruído pelo fogo e pela água, num reverso da criação original, em que mesmo os deuses conhecem o seu destino final. Como sempre, em todo o romantismo alemão, a morte tem um papel central.

 

Os dicionários enunciam variadíssimos significados para o poderoso tom de fim do "crepúsculo dos deuses": em francês, "déclin", mas também "dégringolade"; para o inglês "demise", "descent", "downfall", "fall", "flameout", "comedown", "breakdown", "burnout", "colapse", "crash", "meltdown", "ruin", "undoing"; "defeat", "reversal", "abasement", "disgrace". Não nos faltam palavras, muitas com "down" no princípio ou no fim, e muitas que parecem (e algumas são) títulos de filmes catástrofes. Mas o alemão é para estas coisas a melhor língua, "crepúsculo dos deuses" em alemão tem toda uma história mítica e cultural que se tornou universal, um arquétipo. 

 

Ninguém retrata a grande purga estalinista como um "götterdämmerung", nem o genocídio do Ruanda, nem os massacres bélicos da Guerra da Secessão, nem, em bom rigor, nenhuma guerra do presente ou do passado. A guerra termonuclear, que felizmente para a humanidade, permanece apenas uma hipótese mereceu esse epíteto, como o da encarnação do Armagedão, mas são classificações virtuais. No entanto, na cultura alemã, na literatura, na poesia, no teatro, no cinema e mesmo nas ciências humanas como a história, o "götterdämmerung" parece um pólo magnético. O livro de Ian Kershaw sobre o último ano do Reich chamava-se apropriadamente apenas The End, o "fim", e o filme Der Untergang feito a partir da obra de Joachim Fest o primeiro filme alemão com Hitler como personagem, retrata esse ambiente de "queda", ou melhor dizendo de "götterdämmerung". Muitas destas obras são controversas, porque existe uma enorme dificuldade em traduzir racionalmente, como é suposto, numa análise e numa interpretação, algo que acaba por ter uma dimensão mítica e simbólica e a queda de Hitler tem essa dimensão "crepuscular".

 

Em todas estas obras se refere como Hitler entendeu punir o povo alemão por lhe ter "falhado" e perdido a guerra e que com a sua queda se extinguia não só o homem Hitler, mas também a nação alemã, a identidade alemã, o "espírito" ariano do Reich de mil anos. Por isso, pouco importava o sofrimento enorme para os alemães, civis e militares, com o prolongamento absurdo da guerra, quando todos, a começar por Hitler, sabiam que ela estava perdida. Ele olhava à sua volta e via-se no "götterdämmerung", encarnando um qualquer Deus nórdico da guerra, e por isso, os alemães mereciam a morte.

 

Mas por que razão vou eu gastar estas velas de cera cultural com tão ruim defunto como é o nosso primeiro-ministro? Não é porque não pense que qualquer comparação mesmo negativa com personagens como a deste "götterdämmerung" só podem ser grotescas e ridículas. Não me passa pela cabeça qualquer comparação de Passos com Hitler, nem com Churchill, nem com qualquer figura histórica com dimensão nem pequena nem média, quanto mais grande. 

 

A comparação é puro overkill, mas nalguns aspectos ajuda. O ponto é que há qualquer coisa que sobe à cabeça dos governantes em determinados momentos e que os leva a pensarem, na sua mediania, que também eles são os depositários do destino de um povo e fundem esse destino com o seu próprio, mostrando assim um traço de obsessão que tem uma dimensão psicológica, mas, mais do que isso, tem consequências políticas muito perigosas em democracia. Não é preciso ser um génio, nem um iluminado, nem ter qualquer pulsão, ou "vontade de poder", pode-se ser vulgar e ter ilusões destas. Numa altura em que vivemos tempos de "maldição" essa tentação pode fazer estragos muito para além da qualidade ou falta dela do seu ilusório instrumento. 

 

Naquela encenação de entrevista que passou na RTP, uma forma masoquista dos jornalistas porem em causa a sua própria função e de dar um palco ao primeiro-ministro, Passos Coelho repetiu com a enfâse do convencimento - um sinal de perigo evidente - a ideia de que, ou ele tinha sucesso e "Portugal" e os "portugueses" também o tinham, ou caso não o tivesse, era Portugal que iria pagar um enorme preço. Numa versão benévola desse "sucesso", este consistia na passagem de Portugal do "ajustamento" exigido pelos credores ao "plano cautelar", também exigido pelos credores, a versão pós-2014 do "ajustamento". Caso tal não aconteça, cai sobre nós o mesmo que caiu sobre Sodoma e Gomorra, e a terra fica salgada para muitos e muitos anos. Não lhe passa pela cabeça que todas as premissas e todas as conclusões podem estar erradas, ele pode estar errado, e o país pagar um preço muito mais elevado do que o que seria necessário, quer falhe, quer, acima de tudo, tenha "sucesso". Temo aliás, mais pelo "sucesso" hipotético do que pelo falhanço real, porque o "sucesso" é o congelamento de um país empobrecido até aos limites aceitáveis pela União Europeia - que são muito mais elásticos do que se pensa - destinado a fornecer um mercado para o sol de Verão e mão-de-obra barata, com enormes diferenças sociais, e governado pela burocracia de Bruxelas e pela nossa elite colaboracionista.

 

No meio da obsessão de "que o meu fracasso é o fracasso de Portugal", convém lembrar que no fundo do que estamos a falar não é de uma guerra apocalíptica, nem do travar um meteoro, nem dos deuses a caminho do Valhalla, mas de políticas, de opções de política, de democracia. E que em democracia, mesmo em "estado de emergência financeira", há opções e há leis para cumprir, há tribunais e há protesto e há voto. É verdade que, em consonância com esta linguagem, um fruto milenar e profético da "inevitabilidade", cada vez mais nos dizem que há coisas que não se podem discutir. Não se pode falar do segundo resgate, a não ser para o usar como ameaça. Não se pode falar da insustentabilidade da dívida porque isso é "masoquismo". Não se pode falar de eleições antecipadas, porque não é responsável. Não se pode falar de escolhas eleitorais porque não há verdadeiras escolhas, estamos "obrigados" a cumprir o que os nossos credores "exigem". Não se pode dizer que uma eleição significa alguma coisa, porque, por definição, nenhuma eleição pode significar alguma coisa enquanto nos encontrarmos debaixo do "protectorado". Ou seja, deixem-se de política em democracia, porque a única política permitida é a que não tem escolha, ou seja, a que não é democrática.

 

Toda esta exibição de "o meu fracasso é o fracasso de Portugal" pode não passar de incutir medo, pressionar o Tribunal Constitucional ou de, pura e simplesmente, preparar uma saída baixa vitimizada caso o Tribunal não deixe passar qualquer lei com incidência orçamental. Suspeito aliás, e não é de agora, que este plano de enviar legislação claramente inconstitucional para o Tribunal e receber o respectivo "não", se destina a atirar para o Tribunal o ónus do falhanço próprio e preparar uma demissão do Governo. De facto, o nosso "götterdämmerung" é um götterdämmerungzinho, a palavra mais kitsch que escrevi na vida. E os que pensam que eu comparei Passos Coelho a Hitler não perceberam nada. 

 

É o "zinho" que é a nossa sina, e, se tomássemos à letra a comparação, ainda bem. Mas, mesmo o "zinho" faz imensos estragos e puxa-nos para baixo. Até porque não lhes passa pela cabeça esta coisa simples que nasce do valor intangível da dignidade humana: é que, dificuldades por dificuldades, os portugueses podem preferir sofrê-las sem salvadores, nem tutores, nem mandantes, nem euro, nem Bruxelas.


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