domingo, 20 de setembro de 2009

Sapatos


Foi ao olhar para o interior dos meus sapatos, naquele hotel de Estrasburgo, que as coisas se me tornaram evidentes. As palmilhas eram de cor diversa. Logo, os sapatos também o seriam: tinha trazido calçados dois sapatos de modelo diferente! E só tinha comigo esse bizarro par.
Chegara de Lisboa nessa tarde e, quase directamente do aeroporto, fui para casa do secretário-geral do Conselho da Europa, para um jantar de chefes de delegação. Antes do repasto, como era de regra, teve lugar uma sessão de debate, "au coin du feu", na sala de estar, connosco sentados em sofás, uns em frente aos outros, por cerca de uma hora. Provavelmente, alguns dos ministros e secretários de Estado presentes ter-se-ão apercebido de que o seu colega português estava calçado com incurial diversidade...
Depois do jantar, no salão do meu hotel, numa roda de cadeiras, tinha coordenado uma reunião da delegação portuguesa, onde fora passada em revista a agenda do dia seguinte. Mas, do mesmo modo, ninguém referiu nada.
Agora, no quarto do hotel, cerca da meia-noite, que poderia fazer?
De manhã cedo, parti de carro para a reunião no Conselho da Europa. Na altura da foto de família, lembro-me ter escapado para as filas superiores, garantindo que os meus sapatos ficavam tapados pela sombra dos meus colegas da Islândia ou do Azerbaijão.
Na sala de reuniões, dei-me conta que a temática em discussão estava a deixar-me enervado, mas logo percebi que eram mais os sapatos do que as teses em confronto. Pedi a palavra cedo, disse o que tinha para dizer e planeei uma estratégia: voltando-me para o nosso embaixador, perguntei-lhe se me podia dispensar o seu carro e o motorista por algum tempo. Pelo meu ar críptico, porque não dei qualquer explicação plausível, porque no passado apenas me vira usar o seu carro para ir a livrarias, onde quase sempre me acompanhava, porque era mais do que estranho eu sair a meio de uma reunião ministerial, imagino o que possa ter pensado... Porém, homem com mundo, foi prestável, colaborante e discreto.
Ao motorista, pedi para me levar a um centro comercial. Procurei uma sapataria e pedi para ver sapatos do meu número, quase sem olhar ao preço. Ao experimentá-los, ainda me senti tentado a explicar à empregada a estranha situação em que estava. Olhou-me com uma frieza de quem tinha isso como sua última preocupação, com um pouco carinhoso "Oui, je vois...".
Saí com os sapatos novos calçados e o par heteróctilo num saco. E lá regressei, impante, à reunião. Ninguém escapa ao ridículo e, muitas vezes, como foi o caso, o receio do ridículo é que nos faz cair nele. Ninguém deve ter notado os meus sapatos e, mesmo que assim fosse, que importância isso tinha? Por que razão não assumi o facto e partilhei, desde o início e com um sorriso, a situação? Não sei. Mas lá que é chato andar com dois sapatos diferentes, lá isso é, podem crer...

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