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segunda-feira, 18 de novembro de 2013

ÁLVARO CUNHAL: BIOGRAFIA DE UMA BIOGRAFIA

JPP

1. Entre 1999 e 2005, publiquei três volumes de uma biografia de Álvaro Cunhal, e estou neste momento a trabalhar no quarto, correspondendo aos anos de 1960-1968. Começa na primeira noite que Cunhal viveu em liberdade, depois da fuga [da prisão de Peniche], e termina com a queda de Salazar da cadeira e a sua incapacitação para continuar presidente do Conselho. Será o primeiro volume da série que termina num facto cujo significado é essencialmente político, o início do "marcelismo", e não é marcado por nenhum acontecimento dramático da vida do próprio Cunhal. Até então, no final de cada volume, havia uma mudança significativa das próprias circunstâncias biográficas de Álvaro Cunhal, a "reorganização" do PCP em 1941, a sua prisão em 1949, e a fuga de Peniche em Janeiro de 1960. Acresce que cada um destes acontecimentos compreendia um ciclo de dez anos, cada década muito diferente da anterior. Do ponto de vista da narração era uma sequência ideal, e marcava um fim lógico para cada volume que podia assim conter uma "história" com princípio, meio e fim.

 

 

2. Quando comecei a trabalhar na biografia de Cunhal, a URSS terminara como realidade geopolítica, o sistema comunista mundial desagregara-se e a guerra fria passara à história com uma clara vitória americana e dos seus parceiros da OTAN. Um subproduto dessa importante mudança história foi a abertura atribulada dos arquivos soviéticos e, mais tarde, de muitos outros partidos comunistas europeus. Essa abertura foi caótica e conheceu avanços e recuos, documentos que era possível ver nos anos 90 era quase criminoso tentar ver na década seguinte, porque se tinha de novo retomado a sua classificação de "secreto". Do mesmo modo, a abertura era desigual, centrava-se nos documentos da antiga Internacional Comunista, depositados no então chamado Instituto do Marxismo-Leninismo, mas depois esta fonte fechava-se nos chamados "arquivos presidenciais", só para se abrir excepcionalmente com a decisão de Ieltsin de permitir o acesso aos financiamentos do PCUS aos partidos comunistas. Os dinheiros deixaram de ser segredo, mas muito do resto voltou à velha tradição soviética onde só outro dinheiro, o das grandes instituições universitárias e fundações americanas, permitia, em joint-ventures com investigadores russos, continuar a aceder a novas fontes.

 

 

3. Porém, pela primeira vez, era possível fazer uma história do comunismo que não se concentrava apenas nos escassos arquivos conhecidos, uns apreendidos durante a Segunda Guerra Mundial, outros resultado de personalidades que, com risco da sua própria vida e em segredo, guardavam cópias dos papéis que lhes passavam pelas mãos, como era o caso do kominterniano Jules Humbert-Droz. Começou também a conhecer-se mais daquilo que os serviços de informação ocidentais sabiam, porque nesses arquivos também a guerra fria ia acabando, como foi o caso do tráfego rádio conhecido como "Venona", que retratava as relações clandestinas da Internacional Comunista e depois do Kominform, mas também dos serviços secretos soviéticos. O impacto desse acesso a documentos numa história até então dominada pelo testemunho memorialístico, muito marcado pela dicotomia comunismo-anticomunismo, foi enorme e traumático. Em partidos como o PCF ou o PC dos EUA, e para o movimento comunista mundial como um todo, a abertura dos arquivos soviéticos suscitou polémicas duríssimas, algumas que se reflectiram na recepção hostil do Livro Negro do Comunismo e, nos EUA, na polémica ainda em curso sobre o julgamento dos Rosenberg [Julius e Ethel Rosenberg, casal norte-americano executado em 1953 por espionagem a favor da URSS], do papel de personagens como Alger Hiss [alto funcionário norte-americano acusado de espionagem em 1948] na espionagem soviética da época.

 

 

4. Por volta de 1997, numa conversa com Francisco José Viegas, discuti um dilema que tinha entre escrever uma primeira história não-oficial do PCP ou uma biografia de Álvaro Cunhal. Pensava então que ainda não havia condições para fazer a história do PCP, mas que podia haver para escrever a biografia. Portanto, a decisão inicial foi puramente pragmática e a escolha biográfica não tem o sentido que hoje se lhe atribui de favorecer uma interpretação predominantemente subjectiva, pessoalizada da história, repetindo as suspeitas contra as biografias, que vinham da interpretação marxista da história e da sua revisão mais recente pelo estruturalismo.

 

É verdade que havia também a intenção de alguma maneira de reabilitar a biografia, género que tinha caído quase em extinção. Que me recorde, apenas Maria Filomena Mónica, na mesma época, fazia um trabalho semelhante sobre Eça de Queirós. Depois as biografias tornaram-se moda. A escolha pela biografia como género tinha também outra vantagem - era privilegiar uma narração que pudesse ser facilmente lida por não especialistas (na verdade, na época quase não havia especialistas...) e usar a figura de Cunhal para fazer um embrião de história da oposição a Salazar. Se se quiser havia, e há, uma intenção pedagógica e cívica no que escrevi.

 

 

5. Nunca esteve em causa fazer senão aquilo que nos meios anglo-saxónicos se chamava uma "biografia não autorizada". Tinha igualmente decidido não referir os aspectos da vida de Cunhal de natureza estritamente pessoal, quando não fossem relevantes para sua acção política. Eu sei que essa fronteira era muitas vezes ténue, mas pretendia respeitar a privacidade de Cunhal, então vivo. Tal não significava que não recolhesse todos os elementos sobre a sua vida, mas afastei deliberadamente da biografia as referências quer à sua vida pessoal e afectiva, assim como outros detalhes, como seja relatórios médicos. Escrevi então uma carta a Álvaro Cunhal dizendo-lhe da minha intenção de fazer uma biografia essencialmente política, sem voyeurismo pessoal sobre a sua vida, pedindo-lhe a sua disponibilidade para ser entrevistado. Nunca esperei que respondesse, mas entendi que o devia fazer à partida.

 

 

6. Era por isso uma biografia não autorizada sobre uma figura como Cunhal, que não era uma pessoa qualquer, e sabia que corria à partida um enorme risco: seria sempre muito difícil sobreviver a um ataque directo de Cunhal, uma vez publicado um volume, que podia pegar em dois ou três pormenores e tentar desacreditar a obra. Sempre era da vida dele que se tratava e como argumento de autoridade não havia melhor. Isso levou-me a um extremo cuidado em fundamentar cada linha, mesmo sabendo que era quase certo que havia imprecisões e erros nas fontes, que ele poderia apontar atribuindo-me negligência ou dolo, mas que eu não podia corrigir sem outros elementos.

 

Cunhal nunca o fez, nem ninguém do PCP por ele, e isso foi o primeiro sinal que tive de que a recepção do primeiro volume e dos seguintes pelo biografado tinha sido mais favorável do que os meus receios iniciais. Mais tarde vim a saber por diferentes testemunhos, que Cunhal manifestou várias vezes, na fase final da sua vida, uma apreciação positiva da biografia. Disse ao seu médico que eu sabia "mais da vida dele" do que ele, o que num certo sentido era verdade, porque pudera consultar documentos que ele desconhecia, como seja a parte soviética das notas das reuniões em que participara, por exemplo, com Suslov [ideólogo do Partido Comunista da União Soviética].

 

 

7. Porém, não foi fácil, nem Cunhal facilitou a tarefa, bem pelo contrário. Cunhal, prevenido, tentou tudo para evitar que recolhesse depoimentos de que precisava, principalmente sobre os seus anos de juventude. As pessoas com que precisava de falar eram quase todas octogenárias e já em número reduzido. Carolina Loff recusou liminarmente. Ludgero Pinto Basto aceitou e depois, quando compareci a um encontro combinado em sua casa, não abriu a porta. Soube depois que Cunhal o contactara. Havia uma espécie de omertà que reduzia o número de depoimentos directos, em particular os mais importantes para esse período.

Eu dispunha de alguns depoimentos obtidos sobre o PCP e Cunhal, anteriores à decisão de escrever a biografia, desde o tempo da revista Estudos sobre o Comunismo, incluindo os de Francisco Ferreira e Cansado Gonçalves, e tivera um encontro com "Pável" quando ele esteve em Portugal. Podia sempre fazer essa história com os documentos da Internacional em que Cunhal estava presente, mas seria diferente sem o comentário testemunhal de quem o conhecera in the making. Foi Stella Piteira Santos que rompeu esse silêncio e a sua colaboração dedicada foi fundamental para obter um fluxo de informações e "percepções" fundamentais. Fiquei-lhe sempre agradecido com o seu acto de coragem, porque de coragem se tratou.

 

 

8. Quando comecei a escrever a biografia de Cunhal, sabia-se muito pouco sobre a história do PCP. Hoje, muito do que entretanto se veio a conhecer teve origem na biografia que escrevi, muito usada mas pouco citada ou nunca citada, no caso do PCP. Esta exclusão, que continua nestas "comemorações", estendia-se para além dos círculos do PCP para muitos que pretendiam fazer algum trabalho sobre Cunhal ou o PCP, e pretendiam usar a biografia ou usar-me como "consultor", mas punham como condição não me citar, "visto que isso impedia a colaboração do PCP". Mandei-os passear num sítio bizarro, mas nem por isso o plágio ou a estrutura da biografia deixou de ser usado extensivamente, havendo casos de um filme em que a vida de Cunhal era muito detalhada até à data em que podiam consultar a biografia que escrevera e depois repetia os lugares-comuns que ainda hoje circulam sobre Cunhal e o PCP. Passemos adiante.

 

 

9. O que o PCP fizera de facto, que papel tinham tido Bento Gonçalves, José de Sousa, Miguel Wager Russell, Gilberto de Oliveira, e acima de tudo Francisco Paula de Oliveira "Pável" era ou ignorado, ou mitificado no caso de Bento Gonçalves. Numa altura em que o PCP era verdadeiramente uma "secção" da Internacional, controlado por quadros estrangeiros como Stella Blagoeva (nome então completamente desconhecido na história do PCP), tudo se desconhecia. O mesmo acontecia com a participação do PCP na guerra civil espanhola, as circunstâncias do seu afastamento da Internacional, e o confuso e obscuro processo da reconstituição das redes internacionais, entre a política e a espionagem, depois de 1939. No meio disso tudo, era preciso retratar o papel que começava a ter esse jovem em ascensão que era Álvaro Cunhal, papel que a "história oficial" ocultava de todo, até porque estava bem longe de ser linear.

 

 

10. Essa "oficialidade" da história reflectia-se em particular nos anos muito complexos de 1939-41, o período do Pacto Germano-Soviético, com o PCP afastado do movimento comunista internacional, e nos anos de duro conflito fraccionário interno entre o grupo libertado do Tarrafal e a direcção legítima do partido no interior. Cunhal foi um activo defensor do Pacto Germano-Soviético, escrevendo sob o seu nome no Diabo alguns dos artigos que mais longe iam na legitimação da concepção de que Inglaterra e França eram iguais à Alemanha nazi. Porém, a colaboração de Cunhal no jornal que substituíra o Avante!, o Em Frente, foi e é cuidadosamente esquecida. Aliás, para todos os efeitos o Em Frente não existiu nunca na historiografia do PCP.

 

A mesma ocultação se passava do papel de Cunhal, que estava ligado à direcção do interior, era visto com suspeita pelos "reorganizadores" e depois muda de campo e torna-se um dos principais activistas do grupo de Fogaça, Militão, Pires Jorge, Vilarigues e Dias Lourenço, escrevendo um violento requisitório contra os seus antigos companheiros, agora intitulados de "grupelho provocatório".

 

11. Ao escrever sobre Cunhal tive que reconstruir uma parte importante da história do Partido Comunista Português (PCP). Isto significava dar uma outra vida a personagens que eram nomeadas (as que não tinham caído em desgraça), mas que, com excepção da memorialística da repressão, na prática não existiam como parte activa dessa história. Cunhal ofuscava muitas dessas pessoas, muitas vezes com um papel decisivo em eventos da história partidária, mas a "história oficial" ofuscava-os muito mais. Eles apareciam como paisagem, mas não como actores.

 

Ora essa história foi feita por eles, para o bem ou para o mal da "história oficial", mas eles eram homens de carne e osso, muitos ainda vivos quando comecei a escrever a biografia e com um sentimento de injustiça, que algumas vezes exprimiam sobre o seu "apagar" da história. Estavam na história heróica e épica, mas não na história política.

 

 

12. Havia casos flagrantes de pessoas como Pires Jorge, com um papel decisivo em toda a história do PCP, dos anos trinta até ao pós-25 de Abril, que deixara um pequeno volume de memórias ao estilo habitual e impessoal, mas cujos actos, decisões, opções, modus operandi na clandestinidade, fora decisivo na história do PCP, e que falecera sendo um "nome", mas não uma vida. O mesmo acontecia com muitos outros como Dias Lourenço, que era uma daquelas pessoas que "sabia tudo", ou Jaime Serra, militantes e dirigentes cujo contributo para a história do PCP está muito para além da versão "oficial". Muitos outros, cujo rastro nas breves necrologias do Avante! aparecia retratado em frases vagas e estandardizadas. Um dos aspectos mais problemáticos de ter uma "história oficial" é não incentivar a história real, e objectivamente favorecer o esquecimento.

 

Recordo-me a este propósito de um encontro (junto com João Arsénio Nunes) com Manuel Guilherme de Almeida, um velho alfaiate, decano da sua classe profissional, na sua loja de alfaiataria chamada Academia de Corte Maguidal. Ele recordava que quando foi preencher a sua ficha depois do 25 de Abril no PCP e, perguntado sobre desde quando era membro do PCP, respondeu 1921. E contava ele, com ironia e alguma revolta, a "menina" nem pestanejou, ignorando que estava perante o último sobrevivente vivo da fundação do PCP.

 

 

13. Na biografia de Cunhal este foi um aspecto que sempre me interessou, dar cabeça, tronco e membros a todos aqueles que fizeram o PCP e a resistência ao salazarismo. Devo por isso e para isso, muito a homens como Dias Lourenço ou a Jaime Serra. Lourenço, comquem várias vezes me encontrei e que, mais do que factos e histórias, me permitiu perceber as relações pessoais entre o pequeno grupo de dirigentes que conduziu o PCP desde a "reorganização" de 1941 até ao pós-25 de Abril, as suas idiossincrasias, simpatias e antipatias.

 

O papel de Fogaça, que já pudera antever em conversas com os seus companheiros dos anos trinta, em Portugal e no Tarrafal, como era o caso de Francisco Ferreira ou Francisco de Sousa ("Macedo"), podia assim ser "actualizado" até aos anos do "desvio de direita" e à sua queda e condenação. O modo como a questão da homossexualidade de Fogaça era vista por dentro do partido, onde era conhecida sem ambiguidades, fez-me sempre duvidar da ideia de que fora afastado por essa razão, por um qualquer sobressalto moralista. Estamos a falar de um partido onde centenas de militantes passaram pela prisão e, quer no Tarrafal, quer nas prisões insulares e continentais, práticas homossexuais eram conhecidas e aceites, com muito menos puritanismo do que se imagina. Como sempre acontece em organizações clandestinas perseguidas como era o PCP, o problema essencial era saber se elas punham em causa a "segurança" da organização. Essa é que era a "linha vermelha".

 

 

14. O enorme pragmatismo dos dirigentes clandestinos com mais experiência, em que talvez o caso mais evidente seja o de Pires Jorge, levavam-nos a ver com muito mais desprendimento e sem qualquer puritanismo, as forças e fraquezas da condição humana de homens e mulheres que viviam no limite do risco. A excepcional experiência clandestina da direcção do PCP, que Cunhal também traduziu no Se Fores Preso Camarada..., apelando mais aos valores mediterrânicos da "honra e vergonha" do que à ortodoxia comunista, permitia muito mais consciência e tolerância com as fraquezas do que apologia das forças. A sexualidade tinha aí um papel importante, como bem eles sabiam, mesmo para o caso de Cunhal, sabendo bem de mais o que significava para um homem estar preso na pujança da sua idade adulta. Ou para os pais de crianças na clandestinidade que tinham que se separar dos seus filhos, o ónus que isso significava para as mães.

 

 

15.Esquece-se também que os critérios morais dos anos trinta em que estes homens se formaram e dos anos cinquenta em que eram dirigentes são muito diferentes dos posteriores aos anos sessenta, e muitas atitudes, principalmente face às mulheres, não podem ser vistas do presente para o passado. A idealização meli-melo da biografia de Cunhal, hoje em curso por certo jornalismo apoiado pelo PCP, a quem interessa reconstruir a "humanidade" de Cunhal transformando-o num bom filho, bom pai, bom irmão, bom marido e bom "namorado", pode ser sobre muita gente, mas não é sobre o Cunhal real.

 

 

16.Com pesar da minha editora, o meu próximo volume da biografia de Cunhal não vai sair a tempo do centenário de Cunhal. Digo isto à vontade, porque sou sensível à fragilidade do mercado livreiro e se tivesse possibilidade teria certamente acabado o livro a tempo de engrossar a "moda Cunhal". Mas continua a não ser fácil escrever sobre Cunhal e o PCP, e em cada época os problemas são diferentes.

 

Para o período de 1960-8, há um problema central com as fontes disponíveis, diferente dos volumes anteriores. Existe um número de depoimentos e testemunhos possíveis muito superior, embora ainda muito marcados quer pela dissidência, quer pela dicotomia comunismo-anticomunismo. Mas, pelo contrário, escasseiam os documentos que contam. Os arquivos soviéticos para este período estão fechados ou são escassos, embora alguma coisa possa ser reconstruída dos arquivos dos partidos comunistas europeus ou americanos que já estão abertos. Porém, desde 1961 que a PIDE nunca mais apreendeu qualquer arquivo "central" do PCP, visto que desde 1960, o PCP usando uma máquina que viera da RDA, passou a fotografar e microfilmar os seus documentos e a levá-los para fora do país. De igual modo, muito do que de mais significativo aconteceu nesses anos já ocorreu fora de Portugal, reuniões do Comité Central, o VI Congresso e toda a documentação do Secretariado, nunca entrou em Portugal até 1974. Depois do 25 de Abril parte significativa dessa documentação regressou, mas permanece encerrada no arquivo do PCP. Não perdi de todo a esperança de o PCP poder ter uma atitude de maior abertura - apesar de tudo a publicação das Obras Escolhidas de Cunhal é uma ruptura nas práticas da "história oficial" -, percebendo que muitos dos documentos cujo acesso nega podem permitir que o verdadeiro papel do PCP na história portuguesa se possa estabilizar sem mitificações, mas também sem vilipêndio.

 

 

17. Sem os documentos, subsiste o problema das fontes testemunhais disponíveis, a cujo acesso o PCP tem facilitado em particular a jornalistas de direita cujo conhecimento da história do PCP é escasso. Na elaboração do actual volume coloco em bases de dados toda a informação disponível que é possível extrair desses depoimentos e defronto-me com um problema que muita da indústria do centenário desconhece ou omite: é que, mesmo oriundos da mesma pessoa, mesmo vindos de gente com enorme proximidade aos factos, os depoimentos não "encaixam" nem nas datas, nem nas circunstâncias, nem no conteúdo. E então quando há documentos, ainda menos "encaixam". Umas vezes é a memória que falha e é inocente a reconstrução errada do passado, outras vezes é deliberado.

 

 

18.  Por exemplo, como e onde viveu Cunhal em Moscovo? A habitação muitas vezes referida como sendo a de Cunhal, numa espécie de "Telheiras" soviética, é-lhe atribuída por deliberação datada do Politburo do PCUS, quase em vésperas da sua saída de Moscovo para Paris. Cunhal teve que viver noutros locais, e de facto fê-lo em hotéis do partido soviético, e noutro apartamento diferente. Por que razão deixou Moscovo por Paris, aparentemente sem grande antecipação? Como é que vivia em França clandestinamente, tanto mais que existia um mandato da polícia francesa contra ele? Por que razão as relações próximas com o partido romeno e com Ceausescu, visível em várias fotografias do exílio omitidas nas fotobiografias, são minimizadas, apesar da rádio do PCP estar em Bucareste? Foi Cunhal em 1961 em viagem para a URSS, tendo sido a decisão de aí permanecer apenas posterior à queda do Secretariado em finais de 1961, ou já havia a decisão do exílio antes dessa data? Quis Cunhal desencadear alguma forma de luta armada em 1964, ou pelo contrário, como dizem os esquerdistas, nunca o admitiu? Como compatibilizar a simpatia que Cunhal mostra pela experiência checa de Dubcek [líder comunista durante a Primavera de Praga, em 1968] e o imediato apoio à invasão soviética?

 

As questões são muitas e é uma resposta fundamentada a essas questões que me atrasa, mesmo dedicando todo o tempo possível a trabalhar na biografia.

 

 

19..As minhas objecções à mitificação de Cunhal, que à direita e à esquerda se faz no seu centenário, vem de considerar que Cunhal é muito mais interessante como personagem, e foi suficientemente importante na História contemporânea de Portugal, para ficar preso num pedestal. Talvez se perceba melhor a complexidade da personagem, que é outra coisa diferente da reconstrução "afectiva" de Cunhal ou do seu culto de personalidade político, se tivermos em conta como ele se retratou na sua autobiografia, que não tem este nome.

 

Na sua ficção, Cunhal escreveu mais do que as suas memórias, escreveu a sua autobiografia e, com excepção da sua experiência moscovita, de que é parco em palavras, escreveu sobre a sua juventude e a viagem à URSS nos anos trinta, sobre a sua estadia em Espanha no início da guerra civil, sobre a sua passagem por um regimento de "corrécios", sobre a sua clandestinidade nos meios camponeses, sobre a sua prisão e os seus companheiros de prisão, sobre a sua passagem de fronteiras, mesmo sobre o pós-25 de Abril e o mundo dos Centros de Trabalho do PCP. E retratou-se sempre em várias personagens, algumas compósitas outras inteiramente identitárias.

 

Todas são perfeitas a seu modo, mesmo nos seus defeitos. As palavras mais sensatas saem da sua boca, as decisões mais acertadas pelo bem de todos, do partido, dos seus companheiros, são por ele ditas, os sentimentos mais humanos de compreensão e tolerância, são por si manifestados, a maior disponibilidade para o sacrifício, as maiores exibições de ausência de vaidade e, como se diz hoje, de "protagonismo" é sempre ele no papel das suas personagens que o revela.

 

 

20..Ao homem que escreve assim sobre si próprio falta pelo menos uma coisa que os teólogos da Idade Média, que tinham que lidar com as ordens monásticas, conheciam bem. Falta-lhe "humildade", manifesta uma forma muito especial de vanitas, de vaidade. Não é a das pessoas comuns, mas é vaidade, é actuar como se a corrente invisível da História, com H grande, passasse pelo seu corpo. S. Bernardo, que escreveu para os monges, ou seja gente dedicada a Deus e à sua Ordem, como Cunhal o era à História e ao seu partido, sabia bem como era difícil combater esta forma de orgulho, que faz muito grandes homens, mas não os torna santos, nem santos laicos.


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