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segunda-feira, 30 de setembro de 2013

CONTRATOS PARA CUMPRIR E CONTRATOS PARA VIOLAR

 

CONTRATOS PARA CUMPRIR E CONTRATOS PARA VIOLAR   -   por Pacheco Pereira

 

 

>>> A questão que se segue pode ter um tratamento jurídico, mas não é esse tratamento que me interessa. Pode ter um tratamento de ciência política, mas não é esse tratamento académico que me interessa.

 

>>> O único tratamento que me interessa é um tratamento que se pode chamar "civilizacional", cultural no sentido lato, político no sentido restrito, de escolha, visto que prefiro viver numa sociedade assente em contratos, confiança e boa-fé, do que numa selvajaria em que impera a lei do mais forte.

 

>>> Este é portanto um artigo muito conservador, contra o "revolucionarismo" desleixado e impensado do Governo e do poder actual, que semeia tempestades que deviam repugnar qualquer cidadão que prefere viver numa democracia onde impera a lei e o direito e onde não há "estados de excepção" unilateralmente proclamados pelo poder executivo contra o poder judicial.

 

>>> A questão tem a ver com a "confiança" e tem sido discutida à volta da decisão do Tribunal Constitucional. Chamam-lhe "o princípio da confiança", e os juristas diriam que está implícita na noção latina de que pacta sunt servanda, os contratos são para cumprir, a que eu acrescentaria a noção de que essa é também uma base do funcionamento de uma sociedade democrática e de uma economia de mercado.

 

>>> A ideia de que os pactos devem ser cumpridos, ou seja que a lei os deve proteger, foi um dos grandes adquiridos na Holanda, que permitiu o aparecimento dessa grande invenção que foi a "companhia", ou seja, o capitalismo moderno.

A tempestade originada pela decisão do Tribunal Constitucional equipara a "confiança" a um "direito adquirido", uma expressão que ganhou hoje, na linguagem do poder, a forma de um qualquer vilipêndio. Segundo essa linguagem, repetida por muito pensamento débil na comunicação social, os "direitos adquiridos" não são mais do que privilégios inaceitáveis, que põem em causa a "equidade".

 

 (Se parassem para pensar veriam que não há equidade nenhuma, e meditariam um pouco sobre por que razão se fala de equidade e não de igualdade. Mas essa questão da "equidade" fica para outra altura.)

 

>>> Claro que os "direitos adquiridos" são essencialmente do domínio do trabalho, dos direitos do trabalho e dos trabalhadores, activos e na reforma, e não se aplicam a outros "direitos" que esses são considerados intangíveis na sua essência.

 

>>> Por exemplo, os contratos com as PPP e os swaps, ou a relação credor-devedor, são tudo contratos que implicam a seu modo "direitos adquiridos", mas que, pelos vistos, não podem ser postos em causa. 

 

>>> O meu ponto neste artigo é que o Governo e os seus propagandistas, ao porem em causa os "direitos adquiridos" quando eles se referem a pensões, salários, direitos laborais e emprego, estão também a deslegitimar os outros contratos e a semear a "revolução".

 

>>> Assim mesmo, a "revolução", defendendo uma sociedade em que o Estado e, mais importante, a lei ou a ausência de lei em nome da "emergência financeira", não assegura qualquer "princípio de confiança", ou seja, os pactos feitos na sociedade, pelo Estado, pelas empresas, pelas famílias, pelos indivíduos. 

 

>>> Esta lei da selva é, espantem-se ó defensores da ordem, outro nome para a "revolução", a substituição do Estado de direito e da lei pela força, seja a da rua, seja a do poder sem controlo, seja a da imposição arbitrária assente em decisões conjunturais que passam por cima da "confiança" contratual que permite uma sociedade equilibrada, pacífica, com institucionalização dos conflitos, com mediação dos interesses, e com o funcionamento... de uma economia de mercado.

 

>>> Ao porem em causa o cumprimento dos contratos com os mais fracos, os que menos defesa têm, eliminando qualquer "princípio de confiança" ou "direito" livremente adquirido entre as partes, abrem o caminho para que se pergunte por que razão é que os contratos das PPP são "blindados" (ou seja são "direitos adquiridos") e não podem ser pura e simplesmente expropriados, em nome da "emergência financeira".

 

>>> Eu não estou a defender essa expropriação, mas apenas a dizer que se o Governo e a sua máquina de repetidores entende que pode confiscar salários, empregos, carreiras, horas de trabalho, e direitos legalmente adquiridos pelas partes, e aí não se preocupa com a "blindagem" (que foi o que o Tribunal Constitucional garantiu, mesmo que precariamente), torna igualmente legítimo que se defenda o confisco da propriedade e dos contratos, a começar por aqueles que unem credores e devedores, ou partes num swap ou numa PPP. Ou seja, um governo que assim actua para os mais fracos comporta-se do mesmo modo dos que querem "rasgar o memorando". 


Ora, eu sou a favor de que se cumpra o memorando, realisticamente adaptado à mudança de circunstâncias, que se negoceiem e não se confisquem as PPP, mas que ao mesmo tempo se tenha a mesma atitude em relação aos outros contratos, procedendo também aí a verdadeiras negociações e não a diktats, e procurando soluções que possam manter a "confiança", como seja, por exemplo, encontrar modos de transição, diferenciações entre os contratos do passado e do presente, avaliação de custos e situações.

>>> Ora é isto que o Governo desde o dia um do seu mandato nunca fez, por ignorância, incompetência, dolo e ideologia.

 

>>> Tomou um caminho único, defendeu-o como único, acrescentou problemas novos aos que já tinha, começou arrogante e acabou a andar para trás, para a frente, para o meio e para cima, tentando remediar o que tinha estragado.

 

>>> Sempre que contrariado quis vingar-se, garantindo que os que uma decisão constitucional protegia iriam pagar um preço ainda maior, se possível, ou servir de pretexto para punir todos.

 

>>> E desde sempre mostrou desprezo pela lei constitucional, porque isso lhe permitia soluções mais fáceis, mais imediatas, até porque os seus alvos eram os que menos poder tinham.

 

>>> O resultado foi romper o tecido social como ele nunca tinha sido rompido desde o 25 de Abril, semeando a discórdia e a divisão, sem qualquer resultado adquirido e sustentável.

 

>>> Eu ouço o rumor das objecções. Que não são a mesma coisa, que se trata de coisas de natureza diferente, propriedade e salários, emprego e contratos, que os tribunais decidiriam contra o Estado, levando a indemnizações muito maiores do que os ganhos, de que secariam as fontes de financiamento externo, etc., etc.

 

Tudo verdade, mas tudo também verdade para o direito de não ser despedido sem justa causa, ou de não ver a sua reforma cortada retroactivamente


É por isso que os nossos semeadores de cizânia e de "revolução", da força, de uma sociedade dúplice em relação aos contratos que cumpre ou não cumpre, deviam ponderar nas palavras que originaram o pequeno escândalo, habitual nas redes sociais, vindas de um jovem deputado comunista que ainda não aprendeu a "linguagem de madeira" dos comunistas actuais:

 

 "A corja que despreza a Constituição que se ponha a pau. É que se o meu direito à saúde, educação, pensão, trabalho, habitação, não vale nada, então também os seus direitos à propriedade privada, ao lucro, à integridade física e moral deixam de valer! E nós somos mais que eles". 

O homem foi tratado de "besta", "hitleriano", "aspirante a ditador", "parecido com os fascistas", tudo isto ipsis verbis.

 

>>> Mas o que incomodou na frase foi que ela contém implicitamente uma enorme verdade: é que o "vale tudo" só para alguns é infeccioso para os outros.

 

>>> Ou seja, por que razão é que tenho que aceitar que o Governo me pode confiscar o meu salário e despedir sem direitos, por livre arbítrio de um chefe de uma repartição, ou diminuir drasticamente a minha pensão, agora que já não existo para o "mercado de trabalho" e sou completamente dependente, ou condenar-me ao eufemismo do "desemprego de longa duração", ou seja tirar-me muito mais do que 60% ou 70% da minha "propriedade", que não são acções, nem terras, nem casas, nem depósitos bancários, e quem tem tudo isso não pode ver a sua propriedade confiscada num valor semelhante ao que eu perco?

 

 E aí, ironia das ironias, teríamos o Tribunal Constitucional, com os aplausos do outro lado, a defender a propriedade e a condenar o confisco, como deve fazer. 


É por isso que estes meninos estão a brincar com o fogo e depois gritam que se queimaram.

 

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