Outras páginas.

quarta-feira, 14 de agosto de 2013

O Porto e o poder

Francisco Seixas da Costa

 

 

Acabo de ver na SIC Notícias um debate sobre as eleições autárquicas, dedicado ao Porto. Por uma vez, sem políticos e apenas com comentadores sem "agenda", o que tornou o debate mais interessante e neutral. É pena que as televisões não percebam que ganham muito mais em convidar jornalistas e politólogos, deixando-se de "tempos de antena" com catrefadas de deputados e aparelhistas partidários, que já se não podem ouvir.

 

Seguindo o tema do debate, e por preguiça estival, aqui deixo o que há dias disse numa intervenção pública, onde também falei do Porto e do seu poder à escala nacional:



"Curiosamente, sendo embora a segunda cidade do país, o Porto só com a democracia consegue obter uma expressão significativa a nível do poder central. Se olharmos para a história da ditadura – e mesmo da primeira República - verificaremos que a influência política do Porto, como cidade, junto do poder central, foi sempre muito escassa durante o século XX. E, curiosamente, é uma evidência que o Porto tinha, em particular nesse tempo, um forte tecido de instituições, formais e informais, desde logo na área empresarial, mas igualmente no domínio cultural e no terreno social.



Tudo indica que Salazar nunca gostou do Porto, talvez porque a cidade projetasse uma sofisticação, quiçá algo snobe e elitista, que se contrapunha ao ruralismo esclarecido que ele próprio representava e que Coimbra, com Lisboa, aqui também através da universidade, era suficiente na sua tarefa de cooptar o pessoal político. Graças à sua força económica – recordo que então se dizia: "o Porto trabalha, Lisboa diverte-se" -, o Porto como que se isolou um pouco no processo político à escala nacional, mantendo uma dinâmica própria, uma burguesia longe do cosmopolitismo do dinheiro "novo" de Lisboa, mais Clube Portuense e muito pouco Linha do Estoril. Porém, o Porto burguês não era maioritariamente anti-regime, muito longe disso. O peso da igreja e a proteção dos negócios encontraram sempre no Porto um terreno sólido de apoio ao salazarismo.



Mas o Porto da ditadura foi também aquele que deu o maior banho de multidão a Humberto Delgado, em 1958, como já tinha proporcionado o maior comício a Norton de Matos, nove anos antes, na Fonte da Moura. E é o Porto que gera um bispo que atazanou o ditador e, verdadeiramente, abriu caminho às vias católicas dissidentes à escala nacional. Esse é, alias, o mesmo Porto que produziu Sá Carneiro, esse inesperado incómodo que veio a revelar a fraude da abertura marcelista.



Foi o 25 de Abril que levou o Porto a perder esse seu isolamento. Com Sá Carneiro e as suas adjacências, o Porto entrou para a partilha do poder político central. E por lá tem ficado, no passado de forma bastante mais influente, nos tempos que correm apenas através de alguns "tokens", destinados a garantir uma presença simbólica. Quando se forma um novo governo, à esquerda ou à direita, a pergunta deve surgir: "E do Porto, quem é que se põe?". Eu sei que pode soar um tanto cruel estar a dizer isto, mas esta parece ser a realidade. Não obstante a inegável excelência de muito do pessoal político que os governos foram buscar ao Porto, nas últimas décadas, isso só marginalmente quis significar o peso real da cidade no jogo político nacional.



O Porto desenha um modelo curioso, sendo quase um "case-study". A cidade do Porto assume um discurso reivindicativo, uma mostra de mal-estar permanente, uma queixa de quem se sente mal tratado. Até as distritais portuenses dos dois partidos do novo rotativismo sofrem desta obsessiva necessidade de terem uma idiossincrasia própria, um discurso façanhudo e de cara dura frente aos aparelhos de Lisboa. Com regularidade, como recentemente se viu, o Porto convoca os poderes económicos e os nomes sonantes para a retoma dos vários episódios dessa espécie de batalha virtual com Lisboa. Mas, com o tempo, mas sempre com o sobrolho cerrado, nas entrevistas e proclamações, o Porto lá vai conseguindo o seu novo aeroporto, as suas novas pontes, o seu metro, as vias que o seu jogo de cintura interna consegue arrancar.



Mas convém que fique muito claro: essa guerrilha política, nas formas curiosas, típicas e mediáticas que por vezes assume, não deixa de ter uma indiscutível legitimidade. Porque é verdade que, neste país, continua a haver uma macrocefalia muito evidente em torno e em favor de Lisboa. Só que o Porto, por muitas queixas que tenha, consegue, apesar de tudo, ter uma capacidade reivindicativa, e uma capacidade de imposição, muito maior do que todas as outras urbes de província."


Ver artigo...

Sem comentários:

Enviar um comentário