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sexta-feira, 22 de fevereiro de 2013

Narrativas ou narrotretas?

É curioso como, nestes dias de caos, se fala tanto de narrativas. A palavra foi invadindo progressivamente o espaço público e agora toda a gente - jornalistas, políticos, comentadores - fala de narrativas, como se de uma palavra mágica se tratasse. É a narrativa do ministro Relvas, que escandaliza e indigna todo o País. É a narrativa ultraliberal do Governo, que falha em toda a linha. É a narrativa da crise, que suscita controvérsia no Partido Socialista. É a narrativa europeia, em que cada vez menos europeus acreditam. Etc. A razão desta proliferação é simples: a narrativa surge onde a ideologia desapareceu e, sobretudo, onde e quando o vazio ameaça a política. Ela resulta fundamentalmente de dois fenómenos: da erosão das ideologias, por um lado, e da formatação da realidade pelos media por outro lado. As ideologias, em vez de serem laboratórios experimentais de ideias, transformaram-se em corpus mais ou menos dogmáticos de estereótipos, que dão sempre as mesmas respostas a todos os problemas: para elas, as respostas vêm sempre antes dos problemas. E quando se tem as respostas antes dos problemas, as ideologias deixam de ser um espaço animado por ideias e valores, por factos e argumentos, por explicações e controvérsias. E os partidos que as adotam esquecem tanto os seus compromissos e programas, como temem os respetivos balanços e inventários. É disto que hoje se trata quando se denuncia e lamenta a degradação da política e o descrédito dos seus protagonistas. A formatação da realidade pelos media, por sua vez, encontrou no recurso às narrativas e à suas historietas o melhor modo de simplificar e intensificar as mensagens que produz e transmite, iludindo toda a complexidade dos factos e qualquer efetiva compreensão do mundo. Seja nos noticiários, que adotaram a forma de um esforçado "infotenimento" e são cada vez mais feitos de sequências breves, de imagens fortes, de ligações arbitrárias e de linguagens frustres, num caldo narrativo que já só ocasionalmente consegue respeitar uma qualquer lógica informativa. Seja no espaço de comentário, onde a multiplicação e a polarização encenada das narrativas substitui quase completamente - as exceções existem, mas são realmente poucas! - os factos, a sua explicação e discussão, instaurando assim um universo bizarro, que parece empapado em lérias, larachas e lamúrias. (E também por uma cada vez mais grotesca alacridade, mas isso fica para outra altura.) Muitas vezes, ao ouvi-los, apetece perguntar se os protagonistas desses programas falam mesmo... ou se, simplesmente, são falados, como se fossem marionetas, ou melhor, ventríloquos das narrativas que circulam por aí. O recurso à narrativa representa, pois, mais um passo, e grande, na submissão da política ao marketing. É outro fenómeno que veio dos EUA, sobretudo desde que nos anos Clinton o storytelling se tornou, pela mão dos famosos spin doctors, um auxiliar permanente da governação. O storytelling tinha, de resto, uma forte tradição nos EUA, que vinha dos tempos da escravatura e da segregação racial e que passou pelos muitos clubes de "contar histórias" que se multiplicaram no Mississípi, em Chicago, em Nova Orleães, no Alabama, no Missuri, etc. Foi essa tradição que acabou por inspirar o aconselhamento político na segunda metade do século passado, com P. Salinger junto de John Kennedy, J. Valenti junto de Lyndon Johnson, W. Safire junto de Richard Nixon ou de P. Cadell junto de Jimmy Carter. Antes de, com Ronald Reagan, chegar à Casa Branca um exímio contador de histórias.  Mais tarde, com Bill Clinton, o storytelling seria mesmo visto - é ele quem o diz, nas suas Memórias - como algo novo e decisivo na política contemporânea, como um artifício que permite enquadrar as aspirações das pessoas num horizonte menos ideológico e mais ficcional, dando-lhes "a possibilidade de assim melhorarem a sua própria história". A esta luz, compreende-se melhor de onde vem o sucesso do slogan "Yes, we can", simultaneamente o mais integrador e o mais vazio slogan da história da política contemporânea. Mas a inflação da palavra narrativa - que traduz o storytelling americano - no domínio político tem ainda outra razão. Ela encontra-se no desamparo dos cidadãos perante um mundo que ninguém parece já verdadeiramente compreender nem dominar. As narrativas aparecem então como historietas de oportuno consolo, capazes de propiciar alguma leitura do mundo e dos seus acontecimentos. Como formas simples e acessíveis de representar o incompreensível e de iludir a questão central, que continua a ser a do poder: afinal, quem manda nisto? Mas é precisamente perante as questões decisivas, como esta, que as narrativas revelam toda a sua fragilidade e insuficiência. Elas vivem entre a facilidade da treta e a tentação da burla, de que recentemente tivemos um estridente exemplo. Elas embalam mas não esclarecem, elas insinuam mas não explicam, elas consolam mas não mobilizam. É por isso que elas não respondem ao vazio político que tem alastrado com a crise dos últimos anos - pelo contrário, amplificam-no. Essa resposta continua à espera de ideias, de protagonistas, de símbolos e de valores magnetizadores, que convirjam na construção de uma nova visão do futuro. Porque, como um dia escreveu K. Pomian, na verdade a nossa civilização depende tanto do impulso do futuro como um avião depende do combustível que o alimenta. É aqui que está o problema.

MANUEL MARIA CARRILHO

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