Texto: Alexandre Vermelho
Ismail Kadaré anda há algum tempo nas cogitações para um Nobel. O controverso albanês brinda-nos agora com «O Acidente», editado pela Quetzal. Uma viagem ao eterno mundo do amor, às suas vicissitudes, à sua inenarrabilidade, à sua...pessoalidade. Os tempos são de convulsão na península balcânica. Velhos regimes caem, novos se erguem, o Ocidente estica os seus tentáculos à antiga Jugoslávia. Numa Albânia em que tudo anda demasiado depressa, um acidente rodoviário, a princípio trivial, suscita o interesse de altas autoridades. Investigam. A complexidade do acidente aumenta, passo após passo, até se tornar incomportável para um investigador obstinado que, à escassez de provas, vale-se da sua imaginação e leva-nos a visitar uma história de amor. A de Bessford Y. e Rovena St. O amor entre Bessford Y. e Rovena St. foi um amor como todos os outros amores deste mundo. Deles e de mais ninguém. Uma experiência pessoal e única, moldada pelos tumultos exteriores e interiores. Um amor de perdição, uma guerra diária pelo poder, que ambos travaram embevecidos, mas com honra. Como uma guerra. Uma guerra em que vale tudo e em que os golpes mais baixos estão na gaveta de cima, prontos a arremessar. «Durante toda a noite deu voltas à cabeça, tentando perceber de onde lhe vinha aquele ressentimento todo contra ele. De ela ter acabado com o noivo e ele continuar a não lhe prometer nada? Devia ser isso, pensou (...) Por vezes conseguia acalmar-se: aquele assunto podia ser resolvido serenamente. Devia tentar amá-lo menos, eis tudo.» Kadaré consegue harmonizar brilhantemente as pulsões exteriores de um mundo em ebulição, com os tiroteios inerentes a um amor cego entre duas pessoas. Cola elegantemente Rovena St. à Albânia fragmentada, em emancipação desenfreada, cega pela liberdade. E Bessford é o tirano, que a reprime e subverte a sua sexualidade. «Após a queda do comunismo na Albânia, tendia-se a glorificar tudo: o dinheiro, o luxo, as associações de lésbicas. Todos se atropelavam para recuperar o tempo perdido (...) Naquela época, pensou, também nada era como dantes. Nem por isso, contudo, se havia posto a gritá-lo aos quatro ventos, como ele. Na verdade, nunca nada é como dantes, disse de si para si.» A história é intensa e apaixonante, mas o texto é descontraído. «O Acidente» faz-nos pensar. Faz-nos questionar o amor, a sua veracidade e o seu prazo. Toda a gente que já amou vai ler este livro e rever-se aqui e ali, página após página. Se é desta que Kadaré ganhará um Nobel, apenas o tempo o dirá, mas uma coisa é certa, a parada está alta. D.D.
Bom livro! gostei muito.
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