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domingo, 21 de novembro de 2010

Caixa

"Também passei por isto!"
 
"Faz hoje 39 anos, dia por dia, que entrei para a função pública. Para a Caixa Geral de Depósitos, que tinha então a sua sede no majestoso edifício do Calhariz, onde eu passei a trabalhar, no "serviço de títulos".

As regras eram à antiga. Entrava-se às 9.30 h. Às 9.35, o senhor Marques, chefe da secção, recolhia o livro de ponto. Para o assinar depois, era necessário justificar o atraso e penitenciar-se pelo mesmo. A hora de saída, para almoço e à tarde, era, também, sagrada. Cinco minutos antes da saída final, o Serra, na secretária ao meu lado, sacava de um pano de feltro para limpar os sapatos que, logo depois, apontavam para a porta de saída, para onde disparava quando o ponteiro do relógio tremia nas 5.30 h. Ah! e trabalhava-se nas manhãs de sábado, claro!

Ao almoço, espalhavamo-nos pelas tascas da zona, em grupos variáveis. Se o sol aparecia, escostavamo-nos, antes do regresso ao trabalho, pelos passeios em frente, apreciando o "pequename" que passava. Eu aprendia a vida com que a vivia com dificuldades bem maiores que a do episódico colega que eu era, futuro licenciado, olhado como figura passageira pelos colegas, onde fiz - diga-se - sólidos amigos.

O meu curso universitário prosseguia entretanto, como "estudante voluntário". No primeiro ano, para fazer as "frequências", tinha de pedir autorização para as escassas ausências. Depois, era necessário utilizar os dias de férias, para poder ir a esses exames. Dispensa para aulas ou exames era, então, uma miragem.

Eu tinha entrado ao serviço, como todos, por um concurso público onde algum domínio da escrita compensou ligeiras falhas na área da contabilidade. Antes de ser admitido, li e assinei, sob o olhar atento de um antigo ministro de Salazar, uma declaração onde atestava o meu "ativo repúdio pelo comunismo e de todas as ideias subversivas". No meu bolso, recordo-me bem, levava um livro de Engels, das Éditions Sociales.

O trabalho era sereno, burocrático, sem surpresas. Nem muito exigente, nem deixando tempo para "calaceirices". Essas ficavam para colegas antigos, "primeiros oficiais", com mais "ronha", alguns eternamente parados nas secretárias ou saltitando em conversas, sob o olhar crítico do senhor Marques, entre as várias áreas do imenso "open space" por que nos distribuíamos.

Os contínuos, Rui e Abrantes, davam-nos, regularmente, uma caneta Bic. Quando a respetiva carga acabava, trocavamo-la por outra igual, devolvendo a velha, claro está! Nas horas vagas, tentavam impingir-nos relógios Cauny.

Às segundas-feiras, o futebol dominava. Não se falava muito de política, salvo com o Aldeia e o Murta, amigos com quem essa intimidade entretanto se criara. Dois ou três sabiam que a minha eleição não tinha sido "homologada", por duas vezes, como dirigente associativo universitário, e que isso me tinha criado "problemas", sobre os quais nunca elaborei muito E, por essa razão, ensaiavam alguma cumplicidade, deixando cair que "isto" tinha de mudar, mais cedo ou mais tarde. As vigorosas manifestações do sindicato dos bancários, do qual não podíamos ser associados por sermos funcionários públicos, eram comentadas com todo o cuidado, porque as paredes tinham ouvidos. As paredes e alguns "fachos" que nos rondavam, que pressentíamos poderem ser perigosos.

Pela véspera de Natal, o chefe de repartição, que durante todo o ano assomava uma meia dúzia de vezes à nossa sala, colocava-se junto à saída para um excecional aperto de mão anual. E, de 26 até 31 de Dezembro, lá estávamos nós, em horas extraordinárias (não pagas aos novatos), para tentar garantir os "acertos" para as contas ficarem exatas.

Era assim a vida de um bancário público, nos tempos do Estado Novo. Nostalgia? Nenhuma, podem crer. Mas, hoje, lembrei-me."

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