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terça-feira, 6 de agosto de 2013

Contradições

Francisco Seixas da Costa

 

Ontem, numa aldeia de Trás-os-Montes, uma irritante moto rompia o silêncio da noite. Pela certa, era um pateta de visita a mostrar a máquina aos amigos, escape aberto, aceleração no máximo, atroando as vielas. Percebo agora melhor um amigo que, um dia, em Lisboa, perante idênticos artistas do ruído que teimavam em juntar-se à sua porta, me confessou: "Ando a pensar comprar uma caçadeira...".

 

Lembrei-me ontem disto porque, paradoxalmente, já estive do "outro lado". Não que eu tivesse alguma vez uma moto, mas porque já fui obrigado a defender o ruído das motos produzidas em Portugal.

 

Estávamos na segunda metade da década de 90. Eu representava Portugal no conselho de ministros do "Mercado Interno", em Bruxelas. A agenda dessas reuniões incluíam a análise de uma imensidão de diplomas, relativos a questões técnicas para nós de grande complexidade, até porque diziam respeito a áreas muito diversas entre si. As temáticas ambientais e de proteção dos consumidores eram então as mais vulgares, num tempo em que se procurava legislar para que o "Mercado Interno" intracomunitário pudesse melhor funcionar (e, hoje, talvez valesse a pena completá-lo, como bem perceberá quem me ler e conhecer algo da matéria). A harmonização legislativa era essencial para proporcionar a livre circulação das mercadorias no espaço europeu. Por essa razão, era necessário produzir legislação à escala da Europa, que depois teria de ser transposta para a ordem interna de cada país. E, a partir daí, ser respeitada pelos operadores económicos.

 

Era isso que íamos tratar nessa reunião. Na véspera, no "hall" do Hotel SAS, com a Maria José Salazar Leite, a Lénia Real e a Regina Quelhas Lima, num ritual que iria durar alguns anos, eu tinha passado a pente fino a posição portuguesa sobre todos os diplomas que iam estar sobre a mesa do Conselho de ministros, neles identificando eventuais interesses nacionais a savaguardar, alterações a propor e, em geral, o nosso sentido de voto na decisão final sobre as "diretivas" em causa. A nossa posição era baseada nas opiniões recolhidas junto dos "ministérios sectoriais" (fórmula algo pedante que o MNE utiliza para se referir aos outros departamentos governamentais), que deveriam ter auscultado previamente a nossa indústria interessada. Era assim que as coisas se passavam e, julgo, ainda se passam.

 

O grande berbicacho para nós, nessa reunião, era um diploma que incluía regras muito estritas sobre o ruído máximo permitido às motos e motorizadas. Recordo-me que, dentre os Estados dessa Europa então apenas a 15, Portugal e a Itália estavam em clara minoria, na defesa de um nível elevado de decibéis, que entendíamos deverem ser permitidos ao funcionamento dos escapes das viaturas dessa natureza produzidas pelas suas indústrias do setor. Ao ler a papelada à minha frente, lembro-me de ter pensado na barulheira que as "Zundapp", as "Pachancho" e as "Famel" faziam pelas ruas da Vila Real da minha juventude e, por um momento, senti-me representante dessa bárbara produção lusa de ruído e fumarada.

 

O assunto começara por ser analisado nos "comités" da Comissão europeia, onde os setores técnicos são ouvidos, mas o projeto de "diretiva" não contemplou os nossos interesses. A discussão do texto, nos meses anteriores, no seio dos "grupos de trabalho" do Conselho, também não acomodara as nossas pretensões e o diploma passara no "Coreper I" (comité dos representantes permanentes, versão representantes adjuntos) com as nossas "reservas". Porém, as objeções de Portugal e da Itália estavam longe de ser suficientes para construir uma "minoria de bloqueio", pelo que nos restava politizar o tema em Conselho de ministros, afastada, no entanto, a hipótese de invocar o chamado "interesse vital", para bloquear o diploma. É que um interesse só é "vital" quando os outros o reconhecem como tal.

 

Aquele era o primeiro Conselho de ministros em que eu participava, como secretário de Estado dos Assuntos europeus (quatro anos depois, havia de presidir a esse mesmo Conselho, durante um semestre). Como alguém dizia, "não há uma segunda oportunidade para se criar uma primeira impressão". Isto era válido perante os meus colegas de governos estrangeiros como o era perante a delegação portuguesa. Por isso, com base em sínteses, estudei o assunto tão bem quanto pude, a fim de bem defender as nossas "cores". A certo passo da reunião, pedi, para a fila de trás, onde estavam os técnicos, o texto completo do projeto legislativo: passaram-me um imenso "tijolo", com resmas de anexos, que devolvi discretamente, ciente de o não conseguir ler.

 

Chegado o momento na discussão da diretiva sobre o ruído bdas motos e motorizadas, intervim cedo, lendo uma "speaking note" que me havia sido preparada pelos serviços, texto que, na noite anterior, eu "oralizara" com umas expressões menos técnicas, para dar um tom mais político ao meu discurso. Fui solene e grave. Expliquei, com falsa sapiência e escudado em argumentos técnicos especiosos, que, em absoluto, era impossível à nossa indústria baixar de X decibéis, com os motores a operar a Y por cento da sua potência. Expliquei, com números catastróficos, os impactes sobre o desemprego que um grau de exigência maior na diretiva iria ter, com o encerramento de fábricas e crise nas regiões onde elas se situam. Em apoio às teses que defendia, disse (em português, porque nos Conselhos de ministros fala-se, em regra, a língua nacional) frases técnicas que eu só a custo havia entendido - e que, imagino hoje, devem ter chegado "lindas" aos ouvidos dos meus colegas holandês ou finlandês, retraduzidas através do inglês. Porém, acabei a minha prestação com a perceção, lida na cara das outras delegações, que a minha argumentação não os comovera minimamente.

 

O "tour de table" foi, de facto, esmagador: constatava-se que Portugal e Itália estavam isolados. Com simpatia e imensa ironia, o presidente da sessão, o secretário de Estado espanhol Carlos Westendorp, dirigiu-se então às delegações: "Agradeço as vossas intervenções, as de quantos apoiaram com veemência as virtualidades da diretiva como as de quantos ainda discordam de alguns aspetos que ela comporta. Mas, meus caros amigos, sejamos honestos conosco próprios: nenhum de nós sabe rigorosamente nada do que está a falar! Isto é uma matéria de alta tecnicidade, que somos chamados a decidir politicamente, mas sobre a qual a nossa opinião é apenas a que nos é dada pelos especialistas, que prepararam as "speaking notes" que, de forma tão esforçada, todos vocês leram. Verifico que a Itália e Portugal alegaram ter problemas com a diretiva e, a crer no "dramatismo" das suas declarações, isso pode ter implicações para as suas indústrias. Só posso acreditar em que assim será. Convido a Comissão europeia a estudar, com essas delegações, a instituição de um "período transitório" para as mudanças a introduzir na sua respetiva legislação, dando às respetivas indústrias algum tempo mais para se adaptarem. E espero que, quando o assunto aqui voltar no próximo mês, todos me poupem à sua "sapiência" sobre os ruídos das motos". A sala caiu em risos e, já não me recordo bem como, o assunto lá foi encaminhado. Não me recordo como terminou. Por mim, e para o futuro, aprendi para sempre em não ser muito enfático sobre assuntos cuja tecnicidade desconheço.

Ontem, na noite rural transmontana, senti melhor como a vida é feita de irónicas contradições. E perguntei para mim mesmo, ao ouvir a barulheira da moto: será que a diretiva está a ser cumprida? Ou ainda perdura alguma "derrogação" que dá liberdade a quem me estraga a noite? E será culpa minha, desses tempos, de algo que me tenha escapado? Terei razões para ter algum peso na consciência, desses (demasiados) anos nas lides europeias? É verdade, aprovei muitas diretivas, assinei alguns acordos, mas, com os diabos, nunca assinei "swaps"!


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