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sexta-feira, 6 de abril de 2012

Zé Guilherme

A "manga" do aeroporto de Orly que, no passado fim de semana, ligava ao avião da TAP para o Porto, fazia um cotovelo, o que permitia aos passageiros ler, com facilidade, o nome do aparelho: "Francisco d'Hollanda". À minha frente, dois "letrados", um tanto ajavardados, comentavam: "estes tipos até põem nomes de holandeses aos aviões da TAP, vê lá tu!". Ao que, quiçá premonitório, o outro respondeu: "daqui a uns tempos vão ter nomes chineses, ai vão, vão!"

Entendi não valer a pena explicar que Francisco d'Hollanda foi uma das figuras mais proeminentes da arte portuguesa no século XVI. Lembro-me bem de, no momento, ter pensado que o meu amigo e embaixador José Guilherme Stichini Vilela havia escrito um pequeno livro sobre Francisco d'Hollanda - coisa que eu descobri por acaso, um dia, numa livraria, e a que ele, para minha surpresa, nunca atribuiu grande importância.

Prestes a regressar a Paris, dois dias depois, já no aeroporto do Porto, recebi um telefonema, a dar-me conta da morte do Zé Guilherme.

Coincidimos em posto, em Luanda, nos anos 80, nesse tempo inesquecível em que, com António Pinto da França e Fernando Andresen Guimarães, todos juntos, conseguimos transformar um período profissional tenso e potencialmente abafante numa divertida aventura de vida - também com o Miguel Chalbert, a Ana Poppe, o António Vallera, a Élia Rodrigues, o Fernando Valpaços, os "Guedais" (Vasco, Sérgio e Zé Tó), a Lena e o Bo Backstrom, a Alzira e o João Sobral Costa e tantos e tantos outros.

Até então, eu conhecia mal o Zé Guilherme. Desde aí, ficámos, para sempre, muito amigos e pelo mundo nos fomos encontrando, às vezes com alguma regularidade, outras vezes nem tanto - em Argel e em Londres, no Rio de Janeiro ou em Istambul. Fizemos magníficas férias juntos (lembras-te, Alda?) e, para sempre, o Zé Guilherme passou a ser um membro da nossa família. Era, para nós, como que um irmão mais velho, que às vezes parecia até bem mais novo. Era um congregador de afetos, generoso sem limites, dedicado aos outros, mesmo a alguns que o não mereceram. Muito culto, com um imenso bom gosto, tinha uma grande abertura ao novo e ao diferente, criando, com naturalidade e sem esforço, novos amigos e conhecidos, quase sempre gente muito diversa e interessante. E, às vezes, não.

Falámos pelo telefone, há muito pouco tempo. Desafiei-o a vir visitar-nos a Paris, onde tinha vivido, por duas vezes, no início da sua carreira. Respondeu-me com um discurso cansado e algo desiludido. Mas, depois, na ciclotimia de ânimo que era muito sua, mandou-nos um belo texto de ficção, que escreveu e que hesitava se devia ou não em publicar em livro. E, dias mais tarde, inscreveu-se como "amigo" no Facebook, com uma foto onde exibia um chapéu de palhinha, ao jeito da vida bem informal que agora levava.

O Zé Guilherme fazia parte daquelas pessoas de quem nos sentimos muitos próximos e que, porque não "frequentadas" com a regularidade que desejaríamos, em especial durante a nossa última década de permanência contínua no estrangeiro, tínhamos "reservado" para um convívio futuro mais assíduo, nos tempos mais calmos de ocupações que estão aí para vir. Mas não, já não vai ser possível usufruir do seu sorriso delicado e algo triste, das conversas serenas que alimentava, da sua imensa paciência para os erros dos amigos e, também, da sua crescente impaciência para as posturas dos idiotas. As amizades, como tenho vindo a aprender, não podem ter férias. Assumo a minha quota-parte de culpa nalguma solidão em que ele se foi fechando e em que acabou os dias.

Um imenso abraço, Zé Guilherme, até sempre.

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