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terça-feira, 1 de março de 2011

Hierarquia

Entrava sempre para o tarde. Era uma figura de recorte antiquado, com o cabelo oleado, puxado para trás, risca bem marcada. Dizia-se que não "regulava" bem e, de facto, a sua cara não convidava a grandes familiaridades. O olhar era fixo, mas logo fugidio, não sorria muito e falava ainda menos. Sabia-se que tinha tido uma carreira sofrível, povoada de incidentes de comportamento, marcada por um crescente destrambelhamento, fruto ou razão de crises familares. A sua ascensão à categoria de conselheiro, que à época permitia chefiar missões diplomáticas, era mais do que improvável.

E, dessa forma, por ali estava ele, "velho primeiro secretário" (como então se dizia de outros em idênticas circunstâncias), naquela repartição secundária do MNE, sem grandes tarefas atribuídas, até porque a experiência provara que, para além da irregularidade da sua prestação, dava mais trabalho corrigir o que fazia do que fazer as coisas por ele.

Desde o início, recebera com indisfarçada incomodidade a nova colega que integrara o serviço, do grupo das primeiras mulheres diplomatas que haviam sido admitidas no ministério. Não se dera sequer ao trabalho de ser simpático com ela, como que reagindo ao convívio de géneros que, pela primeira vez, a profissão lhe impunha. E apenas grunhia um som indecifrável, quando esta, pacientemente, lhe dava os bons-dias, remetendo-se depois a um silêncio que a prudência geral do pessoal da sala não ousava quebrar.

Por tradição, à época, cada repartição tinha direito a um "Diário de Noticias", que o contínuo religiosamente levava ao chefe, no gabinete ao lado. Quando, por uma qualquer razão, este não estava ao serviço, o jornal era trazido para a sala, onde a sua leitura era partilhada.

Um dia, a recém-admitida "adida de embaixada", ao entrar na sala comum dos funcionários, viu o "Notícias" sobre uma mesa e, sentando-se no único sofá existente, decidiu passar uma vista de olhos pelo jornal. Estava ela a meio da leitura quando irrompeu na sala o nosso bizarro diplomata. Ao passar em frente à colega, agarrou o jornal e arrancou-lhe das mãos, exclamando, com ar grave: "Eu sou o primeiro secretário!", como que sublinhando o facto de, formalmente, estar a assumir a direção, em lugar do ausente chefe da repartição. E sentou-se, refastelado, na cadeira de braços da sua secretária, abrindo o jornal sobre a mesa.

O estupor apossou-se da jovem colega, que não esperava tal indelicadeza e que, num assomo de coragem, se preparava para reagir à grosseria. Quedou-se, porém, pela intenção, ao ver o "velho primeiro secretário" tirar do bolso do casaco nada mais nada menos que uma pistola, que colocou, displicente, ao lado do jornal.

Tempos depois, o homem desapareceu da circulação. Nunca houve notícias concretas sobre o tipo de tratamento a que veio a ser sujeito no Júlio de Matos. Por estas e por poucas outras, o seu nome ficou para sempre na memória da casa.

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