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sexta-feira, 15 de maio de 2009

Um Recife sem Escritores.

A notícia corre a cidade: o Plano Municipal de Cultura do Recife aceita opiniões antes de virar lei. E quem estiver interessado em contribuir, que escreva para o vereador Osmar Ricardo, osmar.ricardo@recife.pe.gov.br. Isso até segunda-feira. Por isso me apresso em tornar pública esta mensagem, para que a caixa postal do vereador não a devolva entre tantas sugestões de maior peso. Por isso tento e atento a seguir.
Ainda que me julgue a gente toda por perdido, vendo-me tão entregue a tal cuidado, li o Plano Municipal de Cultura na esperança de vê-lo abrigar os criadores de prosa e verso. Erros meus e má fortuna em minha perdição se conjuraram, dá vontade de dizer. Mas digo, olhando bem: no Plano os escritores sumiram, se é que existem, pois raro são vistos na cultura da cidade. Parece que, com exceção de Ariano Suassuna, não há escritores no Recife. Entendam, por favor, Ariano vive sua glória com justiça, depois de toda uma vida de trabalho, criação e literatura. Mas no Recife existe só Ariano? E os outros, negros, mulatos, índios e mamelucos? Onde, em que limbo, inferno ou purgatório se encontram?
Sintam. Para um Plano de Cultura que vira Lei daqui a pouco, com valor e poder até 2019, deveríamos esperar para os escritores algo mais que um Festival Recifense de Literatura todos os anos. A não ser, claro, que os escritores estejam devida e honrosamente contemplados com "Fomento à Literatura - Realizar, anualmente, o Concurso de Prêmios Literários e publicar as coletâneas Marginal Recife, Estação Recife e Invenção Recife, que contemplam a produção poética da cidade; reforçar as publicações; estabelecer um calendário para os prêmios literários nas escolas". O recurso de copiar e colar não foi bem o que fiz agora, na citação anterior. Ele se deu, na verdade, no Plano, quando misturou um relatório de atividades da Secretaria Municipal ao que será norma nos próximos 10 anos. Mas admitamos, num ato de crença, boa fé e melhor vontade em uma só pessoa, que as coletâneas Marginal Recife, Estação Recife e Invenção Recife se rep itam ao infinito. Mas, perguntamos, para que se editar no município, se os livros não circulam, se enchem os depósitos, e de tal maneira que um dos problemas da Secretaria de Cultura é conseguir espaços para amontoar tantos livros "publicados"? Se os livros não se leem, eles, além de uma despesa inútil, são uma forma moleque de se publicar e se continuar inédito.
Mas continuemos, ó homem de pouca fé e açúcar. Pesquisamos mais no Plano e, sentimos, devíamos substituir o açúcar por algo mais dietético. Isso porque nos Programas Estratégicos , na Descentralização Cultural nada há para os escritores. O que é natural, no Recife escritor ou já é centrado ou vive a baixar em centros. Adiante. Nos Direitos Culturais, também nada vezes nada. É direito. Para quê direito à literatura? Na Promoção de Políticas de Transversalidade (que nome!), também nada. O que é natural, também entendemos. As transversais literárias sempre deixam os nossos literatos em uma encruzilhada. Ou vão para o inferno ou vagam em ruas como almas penadas. Adiante. Na Econonomia da Cultura, nada. O que é natural, isso também compreendemos. Com tanta despesa de livros publicados, de que economia reclamam os nossos poetas? Adiante. Em Cultura e Comunicação, também, já viram, nada. Quem é culto, sabe, Literatura não é comunicação, pois escritor não se comunica, vive a conversar com as musas. Muito bem. Com tantos nadas, onde poderia mesmo a Literatura entrar em um dos Eixos do Programa Estratégico do Plano Municipal de Cultura do Recife? (ufa, é um trem de nomes) Onde? Ó homem de má vontade, olhe só onde:
"FORMAÇÃO DE PÚBLICO..." Em décimo quarto lugar entre 16 ordens, aparece "...14. Desenvolver anualmente programas de incentivo à leitura, com oficinas artísticas e técnicas para crianças, jovens, adultos e idosos, realizadas em diversos locais, como escolas públicas, centros culturais, centros de reabilitação,
associações, entre outros. ". Antes que nos ocorram perguntas do gênero, por que anualmente, e não de modo permanente, todos os dias do ano?, devemos reconhecer que nesse ponto é tocada a ferida. E dói, porque, também neste ponto estas linhas devem propor algo, para deixar algo razoável no lugar do vazio e ausência da literatura. Por isso propomos, ilutre relator da nova Lei Municipal de Cultura. Considerando que, no geral, descontadas as honrosas exceções
1. Professores não leem e por isso não podem transmitir um vírus que não possuem
2. Professores - sempre honrados na exceção - e alunos perderam a prática de traduzir o que leem, quando, para a inteligência
Propomos
Um programa de alfabetização massiva nas escolas públicas, e de tal modo que alcance os mestres e alunos, 360 dias do ano. E quando dizemos alfabetização, queremos dizer, que o município assuma como seu dever indeclinável a conquista dos mestres e alunos para as letras e para sua experiência insubstituível. Para maior clareza, que a Lei abrigue programa de formação de leitores que deve ser franca, despudorada e assumidamente de literatura, para os professores e alunos das escolas públicas do Recife. Que se faça uma ponte da poesia e da prosa de hoje até à prosa e poesia dos nossos clássicos. Que tal programa seja uma sedução do conhecimento, como uma formação de gosto. De Carlos Pena e João Cabral aos poetas independentes. Do romance local a Crime e Castigo e Dom Quixote. Um despertar para a empatia imensa da literatura. Um programa enfim que seja realizado por escritores, por quem vive a literatura como destino, vida ou vida.
Justisficativa
Porque não é mais possível que em um projeto de Lei se fale de literatura como uma concessão, quase um pedido de desculpa entre manifestações de palco, de estrelato e público de festivais. Não é possível que se fale da literatura na Lei futura para cobrir um lapso: "Ih, esquecemos a literatura. Então põe aí, letras também..". Não é possível enfim que em uma Lei de Cultura se deseje a literatura sem escritores, esses incômodos que vivem no mundo da lua, que para nada servem, como julga a vã, imensa e resistente ignorância. Os poetas, no Plano Municipal de Cultura nem sequer são lembrados no aniversário da cidade, deste Recife que eles cantaram como a terra entre o mar e o sonho. Para este arremedo de proposta, concluindo, é próprio encerrá-la com versos de Carlos Pena Filho, que esperamos não se tornem proféticos para os escritores na Lei dos próximos dez anos:
"Recife, cruel cidade,
águia sangrenta, leão.
Ingrata para os da terra,
boa para os que não são.
Amiga dos que a maltratam,
inimiga dos que não"

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